O HESICASMO: A PRÁTICA DA ORAÇÃO NA ORTODOXIA
Mauricio Loiacono
Mestre em Ciências da Religião – UPM
mauloiacono@yahoo.com.br
Resumo: O presente artigo pretende demonstrar uma das mais antigas práticas do Cristianismo Oriental, muito
praticado ainda hoje por cristãos do Oriente Médio, Grécia e principalmente da Rússia, exemplificando ao mundo como ser ortodoxo
e estar sempre atento às práticas cristãs. Assim sendo, a Oração Perpétua ou Oração do Coração foi e é ainda em algumas regiões,
não só da Rússia, mas também de outras regiões do Leste Europeu uma prática constante na qual o cristão ortodoxo daquelas
paragens procura sua comunhão pessoal com o Cristo, o mesmo Cristo que introduziu tal prática espiritual quando se afastou
para orar no deserto por quarenta dias e quarenta
noites.
Palavras-chave: Espiritualidade, Cristianismo Ortodoxo, Hesicasmo, Oração.
Abstract: This article aims to demonstrate one of the oldest practices
of Eastern Christianity; much still practiced today by Christians in the Middle East, Greece and especially in Russia, illustrating
the world as being orthodox and always be aware of Christian practices. Therefore, the Perpetual Prayer or Prayer of the Heart
was and is still in some regions, not only in Russia but also in other parts of Eastern Europe a consistent practice in which
the Orthodox Christian seeks his personal communion with Christ, himself who brought this spiritual practice when he moved
away to pray in the desert for forty days and forty nights.
Key-words: Spirituality, Orthodox Christianity, Hesychasm, Prayer.
1. DEFINIÇÃO
Hesicasmo, do grego hesychia, que se traduz em paz e quietude, identifica a tradição milenar da atitude em
se orar ininterruptamente. Meditação e oração na religiosidade cristã, que teve início entre os Padres do deserto no oriente,
seguindo para os dias atuais.
Fundamenta-se na busca em ser perfeito a partir da vida terrena, gerando um caminho ao estado de Deificação.
Reforça a vontade de uma comunhão completa com Deus e em Deus.
Uma prática na qual o agir espiritual, terá uma sobreposição plena em relação a atividade corporal, tendo
esta segunda um papel preparatório no sentido de organização da pessoa que, irá adentrar à esta dimensão metafísica no uso
da alma, e o coração como órgão controlador desse ato pleno no sagrado.
A atitude em orar continuamente surge como força reveladora, a qual insere a
pessoa dentro de uma planificação de vazio intenso. Não devemos, entretanto,
similarizar esse vazio a um estado de desolação, mas sim de extrema bonança e contemplação mística ainda que,
em algumas vezes isso possa ocorrer de forma contrária, pois não devemos nos esquecer que é uma ação originária no elemento
humano, portanto, passível de falhas.
Evento de tal monta, o hesicasmo demonstra a grandiosidade imensurável de Deus que, poderá ser observada no
homem que o pratica, seguindo preceitos no fortalecimento de uma ideia de abandono, concretizada no Cristocentrismo, ou seja,
todas suas necessidades serão absorvidas e providas pelo Cristo, não necessitando o hesicasta do bem profano que rege a humanidade
em um consenso geral.
2. ORIGEM
Conforme afirmação anterior, o Hesicasmo teve seu preâmbulo entre os Padres
do deserto. É uma corrente sólida da Teologia do oriente, a qual se pode remontar a partir de Santo Antão (251 – 356),
o qual viveu a maior parte de sua vida em estado eremítico, e é considerado o Pai do Monaquismo Oriental. Terá um grande desenvolvimento
em Dionísio (pseudo), o Areopagita, com destacado reconhecimento na pessoa de Máximo, o Confessor (580-662), sendo este terceiro
consagrado como o “Pai da Teologia Bizantina”. Antão, Dionísio, Máximo entre outros Padres do deserto, empreendem
a doutrina da Deificação, a perseguição do estado perfeito em vida, em um momento que, a pessoa procura dar maior amplitude
à substância divina, implícita em si como legado de Deus ao homem nos primórdios.
No que toca a Antão, temos conhecimento de sua vida através das palavras de Atanásio, Bispo de Alexandria que, teria conhecido pessoalmente o pai dos Monges,
e concluído a sua biografia entre os anos de 356 e 366, logo após sua morte, quando muitos de seus discípulos ainda estavam
vivos. Em relação a isso, devemos explicar que houve um período que, Antão abandona a solidão do deserto e passa a conviver
com outros monges, tornando-se pai espiritual destes. Essa obra foi escrita a pedido dos monges ocidentais, até onde já chegara
a fama do grande eremita. Esse personagem dos primórdios do hesicasmo é notado pela sua austeridade e na prática de sua ascese.
Comenta-se de sua vitória sobre o demônio que, mantinha sobre o eremita constante
tentação, porém sempre tendo um resultado infrutífero nestas investidas. Antão
notabilizava-se também pela sua forma de aconselhamento, descritas em várias sentenças, palavras estas que demonstravam o
verdadeiro ideal de despojamento, para quem buscasse uma vida plena na espiritualidade, deste eremita retiramos a título de
exemplo, a seguinte sentença inserida na obra Palavras dos Antigos: Sentenças dos Padres do Deserto:
Um irmão que tinha renunciado ao mundo e distribuído seus bens pelos pobres,
guardando um pouco para suas despesas pessoais, veio procurar o abade Antão. Informado disso, o ancião disse-lhe: “Se quer ser monge, vá a tal lugar, compre
carne, cubra com ela seu corpo nu e volte aqui nesse atavio”. Tendo o irmão assim feito, os cachorros e as aves dilaceraram
seu corpo. De volta ao velho, este lhe perguntou se tinha seguido o seu conselho. Como o irmão lhe mostrasse o corpo inteiramente
dilacerado, o santo Antão disse: “Aqueles que renunciam ao mundo, querendo guardar riquezas, são dilacerados desta maneira
pelos demônios que lhes fazem guerra.” (COMBLIN; MASTERS; FERREIRA, 1985, p.19).
Em
outro grande momento do hesicasmo, iremos encontrar Dionísio (pseudo), o Areopagita.
Esse teólogo oriental salienta-nos que, a pessoa ocupa uma posição excepcional, ao estar na missão de fazer-se semelhante
a Deus.
Com Máximo e João Clímaco, teremos
uma desenvoltura da teologia original,
com adequações do pensamento filosófico helênico. Compreendemos a teologia
oriental, transfigurando-se em um caráter de ordem abstracionista e subjetivista, antagonizando-se ao conceito cristão ocidental,
o qual na moldagem determinou-se à legalidade secularizada, em uma condição de ordem pragmática. O hesicasmo irá refletir
a oração constante, também, sob denominações como:
oração mística, oração de Jesus ou oração do coração, reveladora de um ardor
em mistério, ambientada nos cenóbios desérticos, reprodução nostálgica do ideal dos primeiros Padres do deserto. O cenóbio,
em linha geral, apresentava-se como uma comunidade permeada em um estilo de vida pobre e austero, no qual seus habitantes:
Os Padres e as Madres do deserto nos transmitiram suas máximas em apotegmas (ensinamentos ou sentenças). Apesar de verificarmos
a presença feminina nessa condição mística, não temos
notícias relativas a sentenças registradas pelas mulheres, damos essa ideia
a partir da análise dos seguintes escritos inerentes ao assunto como: “A Pequena Filocalia” e as “Palavras
dos Antigos”, entre outros correlatos ao gênero.
Radicalismo na prática espiritual é a tônica desses escritos deixados pelos
cenobitas. Um conjunto de sentenças edificantes, que apesar de serem proclamadas
num tempo que se desgastou por si próprio, são exemplares ao conturbado momento contemporâneo. Nota-se que os orantes contínuos
em verdade, não procuram a sombra da institucionalização ou de bases arraigadas em uma sistematização. Apenas perpetravam-se
“à fuga do mundo”, e nesse exílio de autoimposição, dedicaram-se a um aperfeiçoamento para além do mundanismo
do universo de matéria. A isso, deu-se o nome de “apatheia”, o apartar-se do vício secular, a corrupção entre
a relação homem-
Deus. Fazendo menção a esses cenobitas, Segundo Galilea, no livro: A sabedoria
dos Padres do deserto, informa-nos que:
(...) os Padres do deserto em particular, cultivavam uma espiritualidade basicamente
cristã. É certo que em suas expressões e modalidades radicalizaram muitas virtudes e valores, mas para eles isso estava na
lógica do batismo e, não de uma vida cristã “superior”. Os padres e Virgens eremitas raras vezes eram sacerdotes,
nem pensavam em institucionalizar ou sistematizar sua maneira radical de viver para Deus. Essa maneira de ser cristão foi
sempre apresentada pela patrística primitiva como um “segundo batismo”, isto é, como um segundo chamado à conversão,
para viver as promessas batismais. (GALILEA, 1986, p.115-116). Citamos, há pouco, nomes como Máximo, o Confessor e João Clímaco,
homens que se aprofundaram, através de obras escritas, na exploração do processo de Deificação. João Clímaco (574-649), nos
lega a sua Scala Paradigi, totalmente de caráter ascético, nos relatando uma luta contra os defeitos espirituais em suas primeiras
23 passagens (degraus), fechando o escrito com as virtudes nos 7 últimos degraus. Em verdade um manual de moral, onde suas
máximas tendem a direcionar quem com ele toma contato a um repensar sobre sua vida, numa atitude reflexiva do que realmente
é valido para o viver.
Obra incontestável, que traz o próprio Evangelho de um estado literalmente
inerte, para uma vibração nos moldes do espírito crítico e edificante no que toca à espiritualidade. Da Pequena Filocalia,
temos a seguinte mensagem deixada por Clímaco, no degrau 21 de sua Scala: todo medroso é vaidoso, o que não quer dizer que
todo intrépido seja um humilde; pois os malfeitores, os profanadores de sepulturas, comumente não são medrosos. Alguns lugares
nos provocam medo: não hesiteis em ir até eles em plena noite. Se transigires a esse sentimento, por pouco que seja, ele envelhecerá
convosco. No caminho, armai-vos com oração; penetrando no lugar, estendei os
braços e flagelai os inimigos com o Nome de Jesus. Não existe no céu e na terra, arma que seja mais eficaz. (Degrau 21). (COMBLIN;
MASTERS; FERREIRA, 1984. P.67).
3. SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO
Posteriormente, muitos absorveram essa inspiração do orar contínuo, e trouxeram
para si, muitos discípulos que deram segmento a pratica da hesychia. Um dos mais notáveis foi Simeão, o novo teólogo (949
– 1022). Deste proeminente cenobita, sabemos que, seu nome de batismo era Jorge. Natural de Galate na Plafagônia, filho
de distinta família, ocupando em sua mocidade alto posto como funcionário na corte bizantina, até seguir para o mosteiro de
Studios, ficando sob a orientação de Simeão, o piedoso de quem se tornou filho espiritual. Segue que se aprofundou radicalmente
na oração contínua, tendo arroubos místicos, situação que causou certa apreensão entre os demais monges, os quais acabaram
por desligá-lo da comunidade. A partir daí, foi viver no Mosteiro de São Mamede (São Mamas), onde se tornaria abade. Devemos
salientar, entretanto, que não deixou jamais de orientar-se com seu pai espiritual em estudos, ou furtar-se aos seus conselhos.
Sua severidade foi notória enquanto, orientador espiritual daquele mosteiro
e,
após 15 anos, achando-se incompreendido, deixou o lugar indo habitar em um
oratório sob ruínas em Paloukas, e com a companhia de outros monges, formou um pequeno cenóbio, terminando ali os seus dias,
após uma vida de sofrimento, mas, repleta na graça divina, uma vez que a oração mergulhada na sinceridade foi o seu sustentáculo
verdadeiro, fato este que lhe confere a denominação de teólogo. “Só é teólogo quem ora” - Evágrio Pôntico (399).
A máxima desse monge cabe inteiramente à pessoa de Simeão. Fazemos essa afirmação, uma vez que, entendemos por teólogo, um
estudioso, um intérprete que acaba por criar conceitos em relação às coisas de Deus. Todavia, o personagem sobre o qual ora
comentamos, em verdade dizia-se um iletrado, um ignorante. Não um analfabeto, mas impotente, dentro de um consenso cultural,
apesar disso não condizer a uma verdade cristalizada, mas sim em relação à sua humildade, virtude peculiar de um verdadeiro
praticante do hesicasmo.
Nas sentenças deixadas pelo novo teólogo, constantes na obra Oração Mística,
encontramos uma totalidade cristocêntrica, fundamentada na apatheia, como podemos
verificar no exemplo abaixo:
Monge é aquele que se preserva do mundo e se entretém continuamente a sós com
Deus. Ele vê, ama-o, é visto e amado por ele. Iluminado de modo inefável, torna-se luz. Glorificado, acha-se sempre mais pobre.
Íntimo, sente-se como um estranho.Ó maravilha admirável e inexprimível! Minha riqueza infinita me faz indigente. Penso nada
possuir quando tenho tanto! Digo: “tenho sede”, na superabundância da Água. “Quem me dará” o que já
tenho demais? “Onde encontrarei” aquele que vejo a cada dia? “Como conseguirei” aquele que já está
em mim e está fora do mundo porque é totalmente invisível? - Quem tem ouvidos
para ouvir ouça e compreenda as palavras do iletrado. (hino 3) (COMBLIN; MASTERS; FERREIRA,1985, p.13-14)
A cristocentricidade e a apatheia, em verdade, determinam um reducionismo no
qual o homem experimenta o desvencilhamento de desejos materializados, os quais podem até sugerir ideal de riqueza em seu aspecto profano porém, pobre em seu conceito pois, pode ela ser consumida pelas
ações da cronologia comum, por outro lado, terá conhecimento da riqueza duradoura no tempo do Criador, (termo aplicado somente
a Deus, porque o ato de criar, sugere a configuração de elementos a partir do
nada, ou seja, somente Ele, tem esse privilégio. Já o homem é criador, pois a ele foi dado o poder de criar a partir de algo
já existente, criação de outrora, em período inimaginável pela consciência comum.) ( o grifo é nosso) As obras de Simeão,
o novo teólogo, são repletas de citações bíblicas anexas a tradição oriental e, nota-se nelas também a influência da Patrística
grega.
A mensagem de Simeão, além do
cristocentrismo nela implícito, é apoiada pelo pneuma na santificação e na divinização do batismo. No Oriente, Simeão é considerado
um homem de Deus em cujo conjunto da obra escrita, toda ela basicamente originária em sua experiência pessoal, na intimidade
com o Pai, acabaram por colocá-lo entre os sucessores de João “Evangelista” e Gregório de Nazianzo.
4. OS DESERTOS
O deserto, no que se refere ao hesicasmo, é um dos fundamentos principais para
a prática da intimização com Deus. A bucolicidade dessas regiões, onde impera
a solidão, leva o monge à transcendência para seu próprio interior. Ao permanecer no deserto, o hesicasta terá a plena condição
de meditar em espírito, pois ficará desgarrado do mundanismo imperativo no mundo citadino, ouvindo sua voz que emana da alma,
para além de uma razão limitada pelo consciente, fugindo a visão das alegorias passageiras. Davi em um trabalho denominado,
O Deserto Interior, sugere-nos o seguinte:
Ao interiorizar o deserto, o próprio homem se torna deserto. A terra deserta,
por si mesma, já é destituída de ornamento, e o homem se desnuda da criação. A abertura através do deserto poderá realizar-se
a fim de ultrapassar o Deus face à criatura e, com isso atingir Aquele do qual não é possível nem sequer murmurar Alguma coisa
e no qual a alma se mantém “nativa”. ( DAVI, 1985, p.128)
Não devemos deixar de mencionar as dificuldades que existem para o cumprimento de tal prática, e o processo de tentações às
quais o hesicasta é exposto; mas, se estiver disposto a manter-se na retidão que se auto propôs quando de sua renúncia à vida
passada, poderá atingir o objetivo de “estar” verdadeiramente mirando a Face indizível, não só num estado de olhar,
e sim praticamente, amalgamar-e à essência divina.
Os desertos do Egito, Síria e Palestina, são sempre citados ao falarmos do
abandono feito pelos hesicasta. Compreendidos como caminhos para o deserto interior.
Dentro da tradição cristã, conforme comentários de Leloup, em seu Deserto – Desertos, nos proporcionam três formas de experiência: - O deserto como
fuga do mundo, como o lugar do combate e da luta corpo a corpo com o demônio: o deserto dos ascetas. - O deserto como fuga
para os braços de alguém, lugar de encontro e das núpcias com o absoluto: o deserto dos místicos. - O deserto como experiência
do nada e da vacuidade (vaidade) de todas as coisas, lugar de lucidez onde todos os entes sensíveis e inteligíveis se revelam
na sua impermanência; o deserto dos metafísicos. (LELOUP, 1998, p.29) Não devemos, todavia, procurar entender essas três realidades
de maneira separada, e sim encará-las na sua simultaneidade ou na complementação uma da outra.
São estágios de uma transformação, que remetem ao vivente nessa bela “desolação”,
à um estado de purificação plena, indicando uma abertura das correntes que o prendiam nas algemas do desconhecimento. Isso
acaba então por remontar os primórdios que cristalizam sua real origem: “Filho de um Deus que não cessa de gerá-lo.”
(Idem, ibidem, p.29). No deserto, o asceta morre para o mundo. Esta morte ocorre em corpo e espírito. O corpo deve deixar
de reagir normalmente necessidades da carne, conforme já estivemos falando anteriormente,
deve ter domínio sobre a sede, a fome, a fadiga e o sono. Esta morte do corpo ocorre dentro da meta de se criar um novo corpo.
É o estado constante da aphateia. Uma ausência total de sensibilidade, transmutando-se para uma condição de impassibilidade,
apatia, à cólera, ao medo, aos desejos, em total exclusão aos do universo emocional, não mais vivendo sob as ordens do coração.
Em relação a isso, buscamos uma explicação sucinta em Macário, através de um
questionamento feito por este monge, que retiramos do trabalho de La Carriere, Padres do Deserto: Homens embriagados de Deus:
(...) é um sepulcro (o coração). Quando o príncipe do mal e seus anjos moram nele, e as potências de satã passeiam em vosso
espírito e em vossos pensamentos, não estais mortos para Deus? (LA CARRIERE,1996, p. 244) O coração é o cofre das emoções,
lá elas se regeneram e se fortalecem, indo diretamente, contra a retidão pretendida pelo homem em relação a Deus. Existe então
a necessidade de recusa a tais emoções e, direcionar o órgão vital, para outro segmento que, o torne favorável à atitude de
resignação, tirando-o da condição de canalizador ao pecado. Afirmamos que, o deserto é o habitat natural do Eremita e dos
cenobitas, pois uma vez que, tanto uma como a outra dessas situações de retiro, fosse na solidão da pessoa consigo mesma,
ou em um grupo monástico, ser-lhes-ia impossível adentrar a essa elevação se, não compartilhassem da imensidão vazia, que
revela seu espaço para o recebimento do Amor Indescritível, para além da vã experiência humana.
Recorrendo outra vez a obra de Leloup, evidenciamos a belíssima passagem:
Chega-se ao deserto no dia em que se descobre que ele sempre esteve ali. O
que nos escondia o deserto? Um certo conforto. Um certo esquecimento. Mas lá estava ele fiel, tenaz. Havia apenas ilusões. A perder Algumas honrarias Descobre-se a si mesmo No dia em que se descobre Como tendo
sido descoberto... O rei sempre estava nu Debaixo das armaduras. (1998, p.68) Não compreendam essa abnegação como uma troca
fácil, pois o príncipe do mal, conforme muitos testemunhos dos ascetas, estava vigilante a estas atitudes. Citamos ao falar
de Antão, que ele havia sido tentado muitas vezes pelo demônio, mas por ser um homem de têmpera, firme na sua proposta, soube
imitar Cristo e livrou-se da investida do mal. Ao fazer isso, o Pai dos Monges forjou sua própria identidade, tal qual Moisés
e Maomé, tal qual Jesus Cristo, que após seu despojo enquanto estava no deserto soube derrotar o maligno e partir para sua
missão redentora.
Em outros o mesmo não acontece. Sente-se em alguns que procuram o deserto,
o não alcançar o seu próprio “deserto”, pois no limiar desta caminhada pela “bela desolação”, são
compelidos ao retrocesso, um estado saudoso apodera-se do pseudo - asceta, fazendo com que perca seu trajeto. O termo grego
para designar essa recaída sob forma de saudosismo à matéria denomina-se lupé, um estado de tristeza e frustração. Em seus
Escritos sobre o
hesicasmo, Jean Ives Leloup, faz a seguinte reflexão no tocante ao assunto:
A tristeza visita o monge quando sua memória lhe apresenta os bens ou prazeres
que ele abandonou voluntariamente como sendo de novo desejáveis... Ele sonha com uma casa, uma família, sonha principalmente
em ser reconhecido e ser amado... O espaço da carência é o próprio espaço do deserto para o qual ele se retirou. Mas, como
algumas vezes a carência é muito grande e o deserto muito árido, não estaria o monge correndo o risco de perder sua humanidade?
Ele veio buscar alegria e encontrou a cruz. (LELOUP, 2004, p.65) Isso demonstra que a prática não é algo fácil, mesmo com
os exemplos a partir de máximas retiradas do Evangelho, ou mesmo sob a orientação espiritual de um monge que guarde maior
experiência nessa forma de oração. Para atingir o resultado desejado, a persistência
torna-se peça fundamental. É necessário ser adulto. Ou seja, assumir a carência que
irá se interpor entre o ideal de deificação e aquele que busca este estado, saber compreendê-la e posteriormente, deixa-la
uma vez que, na plenitude de seu deserto intimo, ela não mais existirá. Dessa situação, deve-se retirar o que é positivo,
porque a frustração na ordem material, que muito se revela também no afetivo, poderá nos conduzir ao infinito que só o “Infinito”
pode preencher.
“Fizeste-nos para Ti, Senhor, e nosso coração não repousará senão em
Ti” (Santo Agostinho).
5. OUTROS TRAJETOS DO HESICASMO
5.1. O Monte Athos
O método do hesicasmo, não ficou permeado entre os Padres do Deserto apenas,
seja na condição eremítica ou cenobítica. A oração continua renasce com força
em outras localidades, para fora do Egito, Síria e Palestina, as quais, o ambiente proporciona condições favoráveis a quem
estiver pretendendo fugir do mundo, encontrar o seu deserto interior e conviver em intimidade com Deus, chegando no estágio
de Deificação. Inicialmente, falaremos sobre o Monte Athos. Ponto alto de uma quase ilha de 60 Km de cumprimento e 10 km de
largura situada no mar Egeu, é desde o século X um importante centro religioso da Igreja Ortodoxa. A maior parte dessa quase
ilha é constituída por colinas revestidas de florestas, enquanto no litoral foram construídos altos mosteiros fortificados,
no meio dos quais se encontra o Katholicon, a igreja principal, vermelha, diz-se , como o sangue dos mártires. No cume do
monte ergue-se a
capela da Transfiguração.
Conhecida como montanha santa, é uma das últimas colônias monásticas do Oriente
Cristão. Constitui uma república de monges, que depende da jurisdição
canônica do Patriarcado de Constantinopla, sob a proteção política da Grécia
e onde os representantes de vinte mosteiros autônomos formam a comunidade santa.
Vedado a toda presença feminina, favorecem a sublimação mística do amor e do
nascimento do homem para a eternidade. Eremitas começaram a instalar-se no promontório antes de 850, sob a direção espiritual
de um Protos. Em 963, o monge Atanásio, de Trebizonda, auxiliado pelo imperador Nicéforo II Focas funda o primeiro mosteiro,
a Grande Lavra, segundo a regra de São Basílio. Saqueado pelos cruzados (1204) e pelos catalães (1307). Durante o domínio
turco, a comunidade passa a manifestar certo declínio intelectual.
Pode, porém salvaguardar sua autonomia através do pagamento de tributos. Durante
o século XIX, e até a revolução de 1917, é o monaquismo russo que domina a montanha santa. Conta atualmente com apenas 1300
monges, contra 7000 em 1912 e 15000 no séc. IV. Devido à orientação cada vez mais terrena e social do cristianismo, o monaquismo
atonita, ligado a uma sociedade tradicional e agrária, refugia-se na contemplação escatológica. O monaquismo atonita é puramente contemplativo, atado ao trabalho manual. A tradição hesicasta persiste
com força na montanha, mas devemos compreender que não é uma prática comum a todos os monges, a via da união silenciosa com
Deus, é praticada apenas por alguns monges ainda ligados ao ideal eremítico, que
se unem sob a orientação de um mestre espiritual livremente escolhido. Ainda que na atualidade, o hesicasmo não seja prática
comum entre todos os monges atonitas, a montanha sagrada figura entre um dos mais importantes centros de oração contínua.
Em relação ao hesicasmo atonita, Jean Ives Leloup, remete-nos para a década
de sessenta no século XX, destacando que praticamente nada mudou nesse ato pela busca da deificação, e na obra de sua autoria:
Escritos sobre o Hesicasmo, anteriormente citada, relata-nos no preâmbulo do livro o método de orar continuamente segundo
o ensinamento de um Padre, conhecido por Serafim. Uma metodologia fundamentada em uma pedagogia ressonante na dureza, que
exige de seu praticante um grande esforço físico. Meditar como uma montanha: Assentar-se como uma montanha, isso quer dizer tomar peso: estar carregado de presença (...) permanecer assim imóvel, de pernas cruzadas, a
bacia mais alta que os joelhos (...)
estar sentado em uma montanha é ter a eternidade diante de si, é atitude correta para quem quer entrar na meditação: saber que ele tem a eternidade atrás, dentro e diante dele. Antes de construir uma igreja era preciso ser Pedra, e sobre esta pedra (esta
solidez imperturbável da rocha) Deus podia muito bem construir sua igreja e fazer do corpo do ser humano
seu templo. (Op. Cit. p.13-14)
Essa é a introdução de uma série
de meditações, como: meditar como uma papoula, meditar como o oceano, meditar como um pássaro e meditar como Abraão. Uma série
de exercícios que vão preparando o monge um sentido em que ele culminará fazendo a meditação como fez Jesus. Conforme Leloup,
ainda ao citar o Padre atonita Serafim, nos é explicado que no meditar como Jesus, a pessoa deve se desligar de toda forma
de sentimento ruim, que possa interferir negativamente na prática, demonstrar o amor incondicional ao inimigo, dar-se de forma
total ao seu próximo, não importando quem é. De noite ele (Jesus) se retirava em segredo para orar e murmurava, como uma criança
“Abba”, que quer dizer papai... Isto pode parecer um tanto irrisório, chamar de “papai” o Deus transcendente,
infinito, inominável, além e acima de tudo!
É quase ridículo e, no entanto, era a oração de Jesus, e nesta simples palavra
tudo era dito. O céu e a terra se tornam assombrosamente próximos, Deus e os humanos fazem um só... Talvez fosse preciso ter
ouvido o filho chamar “papai” no meio da noite para compreender isto... Mas hoje essas relações intimas de um
pai e de uma mãe com seu filho talvez não queiram dizer mais nada (...) É por isso (continua Serafim) que prefiro que prefiro
não dizer nada, não usar nenhuma imagem e
esperar que o Espírito Santo
faça brotar em você os sentimentos e o conhecimento de Cristo Jesus, e que este
“abba” não venha só dos lábios, mas do fundo do coração Quando chegar esse dia, você começará a aprender o que
é a oração e a meditação dos hesicastas. (Ibid., p.27).
Essas passagens correlatas às páginas iniciais da obra de Leloup, reforçam
mais uma vez o abandono, o encontro do deserto interior, onde um amplexo entre o hesicasta e Deus se faz acontecer. Revelando
que nesse adentramento ao deserto pessoal, é em verdade deixar um deserto espúrio, onde a pessoa tem sede, mas nunca pode
beber a água que se encontra na fonte da sabedoria divina, pois essa fonte não está jamais onde reina o Baal do plasticismo,
antagônico à verdadeira essência de Deus.
5.2. A RÚSSIA
O Cristianismo entre os russos, conforme relatos, teve inicio com a ação do
Apóstolo André desde o primeiro século, relata-nos ainda a história que no
século IV, existiam várias dioceses na Rússia meridional. No século X, após o árduo trabalho evangelizador dos Padres Constantinopolitanos,
Cirilo e Metódio, a Rússia é verdadeiramente uma nação plena no cristianismo. Um cristianismo que não foi derrotado nem com
a revolução socialista de 1917, que sobreviveu ainda que a duras penas, durante todo o regime desenvolvido pelo governo soviético,
até o final deste na década de 90 no século passado. Podemos então considerar o hesicasmo entre os russos, como um dos mais
importantes elementos dentro da espiritualidade cristã, o qual gerou uma importante obra literária que junto com a Pequena
Filocalia, pode ser compreendido como um clássico sobre a oração contínua naquela região eslava: O peregrino Russo.
Também conhecido como Relatos de um Peregrino Russo, este livro é de origem
apócrifa, pois nunca se soube o nome do autor, mas é uma obra impar que nos insere à fé do povo russo e sua ligação com os
mistérios. Prendendo-nos ainda um pouco mais sobre esta obra que, poderemos chamar “O manual Russo do Hesicasmo”
(as aspas e esse outro título são nossos), sua trajetória pode ter se iniciado no Monte Athos, escrito por um monge russo
que por lá habitava, cujo nome não sabemos, e que mais tarde esse texto teria chegado às mãos de Padre Paisius, abade do Mosteiro
de São Miguel Arcanjo na cidade russa de Kazan que, teria feito uma cópia do
texto atonita e a partir daí, sido
através dos tempos publicado em diversas línguas, fato este que não alterou
sob forma alguma o caráter dos escritos no que toca a sua autenticidade. Estas informações foram colhidas de acordo com o
prefácio de uma edição de 1844.
Fundamentados em uma edição brasileira da obra, notamos as atitudes do personagem,
que seria um camponês na faixa de 33 anos, dedicando sua vida à
peregrinação na constância da oração perpétua, tendo como companheiros dois
livros: A Bíblia e a coletânea Patrística conhecida por Filocalia. Seguindo a tradição hesicasta nesse constante peregrinar,
o autor nos coloca em contato com paisagens e personagens junto aos quais, o peregrino trava conversações e, proclama a espiritualidade
cristã, e muitas vezes nesses encontros acaba por retirar lições que iluminam ainda mais seu viver e a missão que nele inseriu-se:
A busca da deificação em vida. ao redor é a terra russa, planície imensa a perder de vista, florestas desertas, hospedarias
à beira das estradas, igrejinhas pintadas de novo, com sinos que cintilam. Entretanto,
o camponês não se detém jamais para descrever as aparências sensíveis. Cristão Ortodoxo, ele está a procura da perfeição,
sua preocupação é o absoluto. (COMBLIN; MASTERS; FERREIRA, 1985, p.7)
A não preocupação com o meio geográfico e o que nele se insere, está de acordo
com a prática hesicasta , refletindo a Apatheia uma vez que o personagem verifica-se
imerso em seu deserto pessoal e, para ele toda composição de matéria ao seu redor, não tem qualquer significação. É consciente
que todo o cenário do mundo pode desviá-lo de seu trajeto místico, ainda que esteja em um plano material. Sabe também que,
por ser humano é passível de revogar a virtude apática destruindo o que vem alcançando nessa
caminhada. Teme perder a Deus, com quem se encontra em seu deserto intimo.
Pela graça de Deus, sou homem e cristão; pelas ações, grande pecador; por estado peregrino sem abrigo, da mais baixa condição,
sempre vagando de déu em déu. De meu tenho às costas uma sacola de pão seco, na minha camisa a santa bíblia, e eis tudo. (Idem,
p.13) O peregrino deixou tudo, baseando-se na leitura da Epístola aos tessalonicenses, na passagem que diz: “Orai sem
cessar”, questionando-se sobre esta possibilidade de orar todo o tempo com o espírito, pois as atividades profanas,
ligadas ao trabalho não permitiriam tal ocorrência, que foge à oração tradicional. Procurou as respostas para tal dúvida e
não a encontrou prontamente. Será em um pequeno livro que lhe foi ofertado, que começa a ter suas dúvidas sanadas. O livro
em questão era da autoria de São Dimitri de Rostov (1651-1709) denominado: A instrução espiritual do homem interior. Este santo é também responsável pelo menólogo russo: calendário litúrgico que
contém a vida dos santos na ordem de suas festas.
Nesse contexto, o peregrino passa a conviver entre monges que lhe apresentam
a Filocalia, e na leitura desse livro, toma contato com as passagens de Simeão, o novo teólogo e seus exercícios de paciência:
permanece sentado no silêncio e na solidão, inclina a cabeça, fecha os olhos;
respira mais devagar, olha, pela imaginação, para o interior de teu coração,
concentra tua inteligência, isto é, teu pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize ao respirar: Senhor Jesus Cristo,
tende piedade de mim, em voz
baixa ou simplesmente em espírito. Esforça-te para afastar todos os pensamentos,
sê paciente e repete muitas vezes esse exercício. (Idem, p.23) Auxiliado por
um monge, lê outras passagens da Filocalia, e passa a compreensão dos apotegmas constantes nesse livro. O monge em questão,
é o orientador espiritual do peregrino. Conforme os hesicastas, é imprescindível principalmente na modernidade, que quem se
propuser à prática da oração do coração, tenha um orientador nesse sentido, pois se não houver um controle harmônico entre
corpo e espírito, pode o praticante chegar às raias da loucura.
Se o praticante no inicio do exercício, não quiser o orientador, pode apegar-se
na orientação dos Evangelhos. Todavia, os Padres hesicastas sempre afirmam que, o meio mais seguro ao neófito, é ter a orientação
de um guia já experiente na prática. Michel Evdokimov, autor de célebres obras a respeito da ortodoxia, em seu Peregrinos
Russos e Andarilhos, fala-nos sobre o ato de recitação da
oração mística: Confortado pelo conselho do staretz, o peregrino se submete
à grande ascese hesicasta,começando a recitar todos os dia 3000 invocações ao Senhor Jesus Cristo, e aumentando progressivamente a dose medida de suas capacidades
espirituais e psíquicas, até atingir a marca de 6.000 e 12.000 invocações, para finalmente deixar de contar, pois a
oração de Jesus entrara nele, associada à
respiração e aos batimentos cardíacos. Na pessoa desaparecem a dispersão
da atenção e o saltitar de um estado emotivo para outro. À luz serena do nome de Jesus o ser recompõe sua unidade, e na heróica
empreitada da oração perpétua, recupera paradoxalmente a verdadeira liberdade. (EVDOKIMOV, 1990, p.168)
Evidentemente, o peregrino consegue o desprendimento necessário e torna-se
um verdadeiro orante contínuo, pois a máxima desse tipo de oração mística é
conseguir fazê-la vinte e quatro horas por dia, tendo nas batidas do coração, o ritmo da formula que há pouco expusemos, na
citação de Simeão, o novo teólogo. O peregrino russo é então, um símbolo da oração constante, pois visa demonstrar como um
homem comum pode deixar todo o falso brilho e capturar dentro de sua pessoa a substância divina e moldá-la no sentido de ampliação
da mesma. Acreditamos que toda pessoa que resolver aderir a esta praticidade hesicástica, deve ter em mãos essa obra, sempre
acompanhada da Bíblia e da Filocalia, e de um orientador espiritual. Elisabeth Behr-Siegel, autora de importante obra sobre
a oração e deificação na Igreja Russa, nos dá nesta um importante relato sobre o assunto demonstrando passos, para um estado
de perfeição em vida, ambientando essa situação dentro de uma mística desenvolvida na religiosidade que emana dessa Igreja.
A igreja que vai da estrutura concreta e institucional, a qual irá apresentar muitas falhas no transcorrer de sua história
para a figura humana, o verdadeiro templo da Trindade.
Constantes são suas citações de grandes romancistas russos, que impõem às suas
obras literárias, muito da mística religiosa, contrastando-a com a problematização do povo em relação ao seu cotidiano, originária
no perecível. O horror da miséria humana. E, sobre isso, destaca-se a santidade dos hesicastas, que se elevam para cima de
tudo isso, sendo inclusive perseguidos pela igreja institucional contaminada pela sua cumplicidade junto à aristocracia. Uma
igreja que rejeitou as práticas espirituais, pois havia perdido o parâmetro de sua missão junto ao homem, sublevando-se contra
o modo de vida pelo qual passou o próprio Cristo. Na sua concepção, a igreja russa via na santidade dos staretz, e dos demais
hesicastas, um contra senso à realidade que permeava de benefícios materiais a minoria abençoando a miséria camponesa, condutora
desses benefícios senhoriais. Ao citar sobre a santidade monástica, Behr-Siegel nos exemplifica o seguinte, em uma passagem
de certo modo longa, porém adequada sobre o que ora desenvolvemos neste escrito, citando
sobre um grande hesicasta perseguido no século XVIII, o Starets Paisius Velitchkovsky, e o movimento espiritual desencadeado
na Rússia que passou a existir graças a este personagem importante do monaquismo eslavo.
Esta passagem retirada do capítulo VIII, Os “starets” dos séculos
XVIII e XIX, da obra denominada Oração e Santidade na Igreja Russa, explica-nos o seguinte:
“De um desses perseguidos do século XVIII, o starets Paisius Velitchkovsky,
partiu o grande movimento espiritual
que, no século XIX, desaguou numa nova
floração de “santos monges”, os starets dos mosteiros de Optima
e de Sarov, o
mais célebre dos quais é são Serafim Sarov. A santidade desses homens (...)
é
na realidade, fruto de trabalho
espiritual oculto que
continuou mesmo nas
épocas em que a Igreja oficial ignorou ou perseguiu os starets. “Por entre as
piores aberrações podia-se encontrar aqui e ali um eremitério silvestre ou uma
cela de recluso na qual a oração não se calava”. “E até nas cidades,
entre os leigos, não só nas cidades perdidas da província, mas também nas capitais, no
meio do ruído da civilização, os „loucos por Cristo‟, „os simples‟, os „peregrinos‟ os „bem-aventurados‟ continuavam seu caminho, realizando a façanha espiritual do amor”.
Um testemunho dessa vida secreta, oculta aos olhos dos estranhos, são os “Récits
d ún pèlerin à son père spirituel,
que descrevem a vida de um desses „simples‟
que pratica “a oração de Jesus‟, errando
através dos campos e das estepes da Rússia e da Sibéria.”(BEHR-SIEGEL, 1993, p.131-132) Com relação ao hesicasmo entre
os russos, temos notícias da sua prática até a ocorrência da revolução socialista em 1917. Com o fechamento da união soviética,
bem como as mudanças de ordem religiosa por lá ocorridas após a implantação do regime marxista – leninista, não tivemos
mais informações sobre este aspecto místico do cristianismo. Possivelmente a prática manteve sua durabilidade, mas isso fica
em um plano questionável, sob hipóteses de difícil compropabilidade, devido às alterações da mentalidade política naquela
região que durou até o inicio dos anos 90 no século XX.
6. A FORMULAÇÃO DA PRÁTICA HESICASTA OU ORAÇÃO DE JESUS
Ao falarmos sobre a prática hesicasta entre os monges atonitas, dando destaque
ao Padre Serafim, percebemos que aquele diretor espiritual impõe aos neófitos um enorme sacrifício no que se refere ao controle
do corpo, no sentido em que este consiga ficar num estado de tranquilidade. Na verdade a técnica de Serafim é uma das muitas
que levam à oração de Jesus, mas devemos entendê-la como uma das mais severas, e necessariamente não precisa ser desta forma.
A importância do ato está em conseguir chegar a orar continuamente sem usar os lábios propriamente, apenas o coração. A fórmula
desta oração é o mais simples possível; Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim. Muitos adicionam o termo pecador,
porém, esse não parece ser de todo essencial na tradição do hesicasmo, entretanto, não existe qualquer impedimento na adição
deste vocábulo, que assim transforma a sentença, Senhor Jesus Cristo Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador. Essa adição
pode ser considerada desnecessária, visto o fato de todos sermos pecadores, portanto com o acréscimo do termo, estamos apenas
confirmando um estado do qual estamos com a praticidade da oração contínua, tentando nos livrar.
A partir daqui, recorreremos a uma importante obra escrita por um ocidental,
o jesuíta Mariano Bellester, no sentido de implantarmos algumas pistas de como
concretizarmos essa prática contínua: Pronúncia vocal. È imprescindível que
a Oração de Jesus seja pronunciada com os lábios, sobretudo no princípio. Os orientais dão grande importância ao próprio som
das palavras e aos efeitos que este som se transforma, então, em “vibração espiritual”. Observemos, contudo que
a pronúncia vocal é recomendada antes de mais nada ao começar a praticar o método. O que se começou pronunciando com os lábios
poderá converter-se mais adiante em “som interior” (BALLESTER,1993, p. 98) Essa invocação é um preâmbulo do caminho
espiritual ou seja, reconhece-se como um engatinhar do neófito ao hesicasmo. Uma movimentação para o Nome de Jesus, não apenas
sob a orientação de um diretor mas sim, sob o paradigma iluminador do Espirito Santo (pneuma), porque assim esse chamado será
em nós uma derivação de nosso próprio espirito.
Um monge anônimo da Igreja Oriental, no tangente ao nome de Jesus, em uma obra
de sua autoria, a invocação do nome de Jesus, na qual constam apotegmas, todos eles condizentes a nomenclatura do Deus –
Homem, vem nos explicar o seguinte em uma dessas sentenças, a de número 17: “Não há um sinal infalível de que somos
chamados ao caminho do Nome. Pode haver, entretanto, alguns indícios desta vocação que devemos considerar com humildade e
cuidado. Se nos sentimos impelidos à invocação do Nome, se esta
prática produz em nós um aumento de caridade, pureza, obediência e paz; se
o
uso de outras orações está tornando-se um
pouco difícil, podemos concluir,
não sem razão que o caminho do
Nome está aberto a nós. (COMBLIN; MESTERS;
FERREIRA, 1984, p. 37) A soberba pode enganar! Ou seja, não devemos nos
ludibriar por um falso chamado. Para efetuarmos esta invocação, projetando o seu objetivo final que ocorre inteiramente em
nosso espírito, devemos estar repletos da luz que emana das benécies mencionadas no apotegma, mais uma vez temos a revelação
da apatheia ou seja, se ainda tivermos ranços oriundos ao mundanismo material, estaremos cometendo um
erro, o qual impedirá de que se atinja a comunhão pretendida com Deus. O repetir
da fórmula, tornar-se-á um mantra sem fundamentos, preso meramente ao campo da racionalidade.
Em verdade, não estaremos inseridos no deserto interior, e sim numa dimensão
criada dentro da nossa razão. Nisto vemos então a importância da abdicação
de tudo o que é palpável e atuante como agente inibidor da imaculação da alma. Se pensarmos bem, o método exposto por Serafim
de Athos, apesar de causar a fadiga do praticante na diversidade de fases em que se apresenta, pode muito bem funcionar como
força de lapidação da pessoa, a fim que ela realmente se aparte das tentações do século, tendo a oportunidade de caminhar
em seu deserto interior, através da magna pureza em seu ato de orar criando nessa dimensão, seu tão almejado encontro. A oração
contínua, que invoca incessantemente o nome de Jesus, é embalada no ritmo respiratório do profano: Descoberta do próprio ritmo. Os hesicastas convidam a pessoa a unir a pronuncia do nome de Jesus ao ritmo
de sua respiração. Tudo isto, no começo, pode produzir leve sensação de artificialidade ou de aborrecimento. Bastarão alguns
dias de prática para desaparece resta sensação. O que acontecerá é que a consciência demasiado reflexa de respiração irá desaparecendo
com a frequência das repetições. Então, o ritmo deixará de ser forçado, embora esta certa violência só tenha ocorrido em nível
muito sutil da personalidade. Após haver desaparecido toda espécie de tensão, pode-se dizer que se “respira” natural
e tranquilamente o nome de Jesus. Esta é a descoberta do ritmo pessoal da Oração de Jesus, que cada um deve fazer por si mesmo
e que só a prática pode revelar. (BALLESTER,1993, p.98-99)
Fechando essa parte relativa ao método da oração do coração, nos prenderemos
ainda em Ballester, onde ele nos fala sobre a Disciplina diária. Toda atividade provém de um regramento e, o hesicasmo, como
percebemos,
não se distancia disso. É imanente de um exercício diário, uma retidão que
exige, a todo momento, uma concentração que dissipa do hesicasta todo o cenário ao seu redor, fazendo vislumbrar uma nova
realidade no plano metafísico. Interessante que essa atitude de “apatia”,
é perceptível também nos iniciados da Ordem Rosa-Cruz e na Maçonaria, em seus rituais de passagem inerentes a troca de graus,
onde a pessoa abandona todo o profano que envolve sua vida, seguindo em peregrinação para a vida espiritual na sua pureza.
Na maçonaria, são exatamente trinta e três graus, situação que evidentemente liga-se a tradição sinaíta de João Clímaco, e
sua Scala (escada), que já tivemos oportunidade de falar anteriormente. Compreendemos isso como ação arquetípica, no tocante
a doação de si mesmo para Deus. Isto é ponto constante nessas duas ordens herméticas, em todo seu conjunto ritualístico:
A Disciplina Diária. Certa disciplina e certa ordem diárias nas repetições
das
fórmulas são também indispensáveis na verdadeira Oração de Jesus. Repetirei,
entretanto, que esta condição como a anterior, só é necessária quando a Oração de
Jesus se converte em centro de
toda a vida espiritual. (Idem, p. 99-100) Num sentido de confirmação ao
que dissemos em relação a sinceridade de se envolver na oração hesicasta, é preciso
abraçar essa ideia de ampliar
o conceito do Todo em nosso todo, revivendo ao menos parte de seu ideal. Dizemos
isso pois, sabemo-nos como falíveis, entretanto, deve existir em nós um apelo ao pneuma
para que nos auxilie na mudança e nos possibilite chegar perto de um estado
de consciência, o qual possamos nos reconhecer como mudados, transfigurados no hoje em relação ao ontem. Pois, só existe um
Pai, um Filho, um Espírito Santo. As três Hipóstases são únicas, e só podemos
tentar uma aproximação com Elas, jamais ser uma delas. Não estamos em absoluto negando o estado de deificação a que se propunham
e propõe os hesicastas, mas somos da crença que, em se pensando no mundo moderno, poderemos alcançar tal condição sagrada,
quando “retornarmos” do nosso deserto e depois de havermos comungado com Deus, deveremos buscar o alento do próximo,
esteja ele na situação em que se encontrar se assim não for feito, sob aspecto algum nos reconheceremos como deificados, mas
mergulhados no pecado do rio da soberba e arrogância, a deriva da verdadeira salvação.
Analisemos então esses apotegmas retirados da Filocalia: O átrio da alma racional
é o sentido; seu templo, a razão; seu pontífice, o intelecto. Fica no átrio o intelecto pilhado pelos pensamentos intempestivos;
no templo, o intelecto pilhado pelos pensamentos oportunos. Quem escapa a uns e a outros é julgado digno de entrar no divino
santuário. (ap.158) O ativo deseja a dissolução do corpo e a união a Cristo, por causa dos sofrimentos desta vida. O contemplativo
acha melhor permanecer na carne, por causa da alegria que recebe da oração e para ser útil ao próximo. (ap.160). (COMBLIN;
MESTERS; FERREIRA, 1984, p. 105)
7. CONCLUSÃO
O tema que procuramos explorar dentro do cristianismo oriental, a nosso ver
marca-se pela importância, no sentido da aproximação entre criatura e Criador.
Uma proximidade que, se ocorrer verdadeiramente irá gerar uma transformação plena em quem busca o hesicasmo. Sabemos, entretanto, que não foi de nossa competência abranger o assunto em sua totalidade, pois a prática
da Oração do Coração ou Oração de Jesus tem um universo que segue para muito além da cristandade oriental, gerando influências
aos séculos posteriores, formadora de uma mentalidade monástica ocidental não puramente contemplativa, mas, adequada aos tempos
em que foi sendo inserida. Nosso trabalho ficou conforme pode ser constatado em suas laudas, bastante preso ao oriente, Grécia
(Monte Athos) e procuramos enfatizar um pouco mais o mundo russo na região eslava que germinou uma forte gama de hesicastas
na figura de grandes Starotz.
O hesicasmo em nossa constatação, hoje primazia quase que total da Igreja Ortodoxa,
é elemento de propagação da bem aventurança no interior de seu praticante, uma linda morte em vida. Não vamos compreender
esse termo como algo definitivo, mas em verdade um caminho para a verdadeira ressurreição.
Onde o passado é deixado para trás, e uma nova vida ressurge, a exemplo de Paulo às portas de Damasco, quando pode
reconhecer o Filho do Homem através da cegueira, uma escuridão que envolvia e removia dele o seu passado, paradoxalmente trazendo
a luz para o espírito daquele que seria cognominado “O Apóstolo”. Paulo morria para a vida profana que até então
tinha vivido, adentrando em um novo mundo para o serviço da Totalidade sintetizada na Figura de Jesus Cristo.
Assim é o hesicasta. Ele transcende dimensões comuns para caminhar entre as
dunas do plano Sagrado e fortalecer a substância divina que está contida em
si. Na realidade, aquele que faz do hesicasmo sua conduta de vida além de descobrir o Deus – Homem, descobre verdadeiramente
o seu eu, enquanto ícone do Verbo que se encarnou.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEHR-SIGEL, E. Oração e Santidade na Igreja Russa. São Paulo: Paulinas, 1993.
BALLESTER, M. Experiências de Oração Profunda. São Paulo: Paulinas, 1993.
COMBLIN, J; MESTERS, C; FERREIRA, M. E. A invocação do Nome de Jesus. 5. Ed.
São Paulo: Paulus, 1984.
______. Palavras dos Antigos - Sentenças dos padres do deserto. São Paulo:
Paulinas,
1985.
______. Pequena Filocalia - O livro clássico da Igreja Oriental. São Paulo:
Paulinas, 1984.
______. Relatos de um peregrino russo. São Paulo: Paulus, 1985.
______. Simeão, o novo teólogo - Oração Mística. São Paulo: Paulinas, 1985.
DAVY, M.-M; O deserto interior. São Paulo: Paulinas, 1985.
EVDOKIMOV, M. Peregrinos russos e andarilhos místicos. Petrópolis: Vozes, 1990.
GALILEA, S. A sabedoria do deserto – Atualidade dos Padres do deserto.
2. Ed. São
Paulo: Paulinas, 1986.
LACARRIERE, J. Padres do Deserto – Homens embriagados de Deus. São Paulo:
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LELOUP, J-I. Deserto – Desertos. 4. Ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. Escritos sobre o hesicasmo – Uma tradição contemplativa esquecida.
2. Ed.
Petrópolis: Vozes, 2004.