* EPARQUIA DA IGREJA ORTODOXA DA DIASPORA E GRECIA * DOS GENUINOS ORTODOXOS CRISTAOS - GOCs BRASIL

A História da Ortodoxia no Mundo

Apresentação
Sucesión del Metropolita Angelos de Avolona
Consagração do Bispo Kyrillos Alves
True Orthodox Christians of Russia
Genuine Orthodox Christian's (GOC's) Church of Hellas
The Autonomous Orthodox Metropolia of North and South America and the British Isles
Calendário Ortodoxo Permanente Multilingue
DOSSIÊ E BIOGRAFIA
1 º Aniversário da União Ortodoxa Verdadeira de três jurisdições
Abril 2012: Histórico Concelebração na Festa de Myron - Portadores
Álbum de Fotos de G.O.C.'s Hellas e Brasil
Santo Sínodo Metropolitano do Patrístico Calendário
Estatuto da Igreja de G.O.C.'s
SODIMA - Seminário Maior de Teologia
Genuína Igreja de Cristo Presbítero Pedro Anacleto
Tradição dos Cabelos e Barbas Longas
Vestimenta Clerical e as 7 Excelencias da Batina
O Hesicasmo: Prática da Oração
Quem Somos Fundação da Eparquia do Ceará
Ritos Litúrgicos
* HERMITAGE * Bispo nomeado Cirilo para o Brasil na TOC - Bulgária
Igrejas Irmãs GOC/TOC
Cristão Ortodoxo (Inglês)
Santos na Igreja Ortodoxa
SYNAXARION: Os Santos de cada dia
Ortodoxia da América para o Mundo
Cânones, Sínodos e Concílios
Doutrina: Símbolos e Regras Cristãs
Nossa História Hoje
Doutrinas Ortodoxa
A Théôsis e Ortodoxia
Justiça Divina
Os Perigos do Ecumenismo
As Heresias do Ecumenismo, Papismo Apostasia
Santo Sínodo Regional Diocesano - D.O.C.S.
O Chamado Sacerdotal
Justiça de Deus e Justiça dos Homens
O Último Elias, O Profeta
Bizâncio: História, Sociedade e Religião
Igreja Ortodoxa Cultura Geral
Sua Eminência, Mais Reverendo Platon
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Metropolitano de Toda América e de Canadá, Fervereiro 1924.

Aftimios Ofiesh, Bispo de Brooklyn na América
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de 1917 até Abril de 1933, successor de St. Raphael de Brooklyn

Sua Santidade PatriarcaTikhon Vasily Bellavin
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O Primeiro Patriarca de Moscow e de Toda Rússia, 1917 - 1925.

A Sociedade de História Cristã Ortodoxa na América (SOCHA) existe para a promoção, o ensino e estudo da história da Igreja Cristã Ortodoxa no Novo Mundo. Ela é particularmente dedicada a este estudo com base em análise de fontes primárias com integridade e clareza.

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                Aftimios,Tikhon e Platon

É Interessante conhecer, quais foram os passos para chegar a uma decisão de criar uma Igreja Ortodoxa propriamente americana, esta – estabelecida primeiramente em território dos Estados Unidos; curiosamente a “Santa Igreja Católica Apostólica Ortodoxa do Oeste”, foi criada em 2 de Fevereiro de 1.927 e registrada em 01 de Fevereiro de 1.928, com a aprovação do Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa do Norte da América, fundada pelo Arcebispo Aftimos Ofiesh, porém quem era este Arcebispo, também chamado de “Mar Abdullah” por seus fieis de origem árabe-sirio?

Mons.Aftimios nasceu na Síria em 22 de Outubro de 1.880, e dedicou – toda sua juventude a formação sacerdotal ortodoxa, como um monge, até sua ordenação presbiterial, recebida diretamente das mãos de S.B.o Patriarca Meletios II, de Antioquia, sob jurisdição do Patriarca Ecumênico de Constantinopla (Turquia).

Naqueles anos no principio do século XX (1.905), ainda não existia o Patriarcado Russo, que foi re-fundado em 1.917 pelo Metropolita Tikhon Bellavian, em San Petersburgo. O padre Aftimios foi enviado para trabalho das missões, e chegou à Nova York ,(EEUU) em 13 de Dezembro de 1.905 , ficando sob a jurisdição do recentemente consagrado Bispo de Brooklyn, Mons. Raphael Hawaweeny, que estava a cargo da comunidade árabe ortodoxa nos EEUU, Mons. Raphael Hawaweeny, havia sido consagrado ao Episcopado em 12 de Março de 1.904 pelo Sínodo Russo, presidido pelo Metropolita Makariz (Michael Nevsky, 1835 – 1926 +).

Exatamente em 04 de Janeiro 1.904, aproximadamente, um mês antes, Mons. Nevsky – Makariz, Presidente do Sínodo Russo no Norte da América, Ilhas Aleutianas e Alaskas havia consagrado bispo a outro muito importante fundador de quase todas as linhas ocidentais da ortodoxia russa – siriana, se tratava de Mons. Basil (Michaelovich ou Meschersky), também chamado Eudokim ou Eudokimov (1.869 – 1.935 +), tanto a consagração de Mons. Raphael Hawaweeny como de Mons. Eudokimov havia atuado nas consagrações do bispo missionário nos Estados Unidos, Mons. Tikhon Bellavin, o qual seria posteriormente o Primeiro Patriarca Russo do Século XX.

Mons.Tikhon esteve como Metropolita na América desde 1.898 até 1.907, data que retornou a Rússia onde permaneceu até seu falecimento em San Petersburgo, em 25 de Março de 1.925.

É justo reconhecer que havia divisões na América desde o primeiro bispo enviado da Rússia, Mons.Nicholas Ziorav, falecido em 20 de Dezembro de 1.915, que exerceu a Metropolia Norteamericana de 1.891 até 1.898, em que foi substituído por Mons. Tikhon Bellavin (1.898 – 1.907), que por sua vez foi sucedido em 1.907 pelo Metropolita Platon Rozhestvensky, que assumiu e permaneceu em Nova York até 1.914, quando o Arcebispo Basil Eudokimov, retoma a condução até 1.917, posteriormente Mons. Eudokimov retorna a Rússia e morre em 1.935, sob total controle comunista exercido pelo Patriarca Moscovita Sergio Stagarodsky.

Quando em 1.905, o monge Aftimios Ofiesh, chegou a América, se estabeleceu como decano da catedral de São Nicolau no Brooklyn, e logo foi enviado durante 11 anos como Pároco de Montreal, Canadá; e foi naqueles anos que Frei Aftimios conheceu a Mons. Rizhi Kallah Abou – Hatab, (Mar Emanuel) falecido em 1.933, e Mons. Zielonka (Mar Joseph), falecido em 1.934, e a Mons. Sophronios Bishara (Bashir), falecido em 1.940.

Entretanto, em 1.913, Mons. Shehadi “Germano”, recém chegado da missão brasileira, nascido na cidade de Zahle, ordenado em 1.900, tinha como meta restaurar os Patriarcados Sírios de Damasco, que estava separado do Patriarcado Grego desde 1.916, e agora Mons. Shehadi “Germano” ao ser elevado como Metropolita, disposto a separar-se do Patriarcado Russo, criando a Igreja Síria Ortodoxa do Norteamerica.O Padre Ofiesh fiel a seu antigo bispo, Mons. Raphael Hawaweeny voltou a Montreal e logo no falecimento deste , em 17 de Fevereiro de 1.915 , se postula ao Episcopado.

O Arcebispo Eudokimov (Basil Eudojim Mikhaliovich Merschersky (1.869 – 1.935+), recentemente eleito Metropolita, comunica ao Santo Sínodo de Moscou, que dos 41 padres integrantes do Sínodo, 34 eram favoráveis à consagração Episcopal do Frei Aftimios, para ser o legitimo sucessor de Mons. Raphael ultimo Arcebispo Metropolita de todos os Árabes do EEUU, sob jurisdição do Sínodo Russo; em 13 de maio de 1.917, o Arcebispo Metropolitano Eudokimov e os bispos Mons.Alexander Nemolovsky e Mons. Stephen (Alexander Dzubai), de Pittsburg o consagram Bispo na Catedral de São Nicolau em Nova York. Seis anos depois de sua consagração Episcopal, em 1.923, o Metropolita Platon, eleva a Mons. Aftimios ao Arcebispado.

A IGREJA ORTODOXA

 

Bispo Kallistos Ware

Tradução de: Padre Pedro Oliveira

 

Parte I: História

 

 

1. Introdução

 

A Ortodoxia não é um tipo de Catolicismo Romano sem o Papa, mas sim alguma coisa muito diferente de qualquer outro sistema religioso do ocidente. No entanto, aqueles que olharem mais de perto esse "mundo desconhecido”, nele descobrirão muita coisa que, mesmo diferente, é, ao mesmo tempo, curiosamente familiar, "mas isto é aquilo no qual sempre acreditei!." Esta tem sido a reação de muitos ao aprender, mais profundamente, sobre a Igreja Ortodoxa e sobre o que ela ensina; e eles estão parcialmente certos. Por mais de novecentos anos, o Oriente Grego e o Ocidente Latino têm se desenvolvido firmemente separados cada um seguindo seu próprio caminho, tendo tido, no entanto, solo comum nos primeiros séculos da Cristandade. Atanásio e Basílio viveram, no oriente, mas eles pertencem, também, ao ocidente; e Ortodoxos que viveram na França, Bretanha ou Irlanda podem, por sua vez, olhar para os santos nacionais dessas terras — Albano e Patrick, Cuthbert e Bede, Geneviéve de Paris e Augustine de Canterbury — não como estranhos, mas como membros de sua própria Igreja. Toda a Europa foi um dia tão parte da Ortodoxia como a Grécia e a Rússia são hoje em dia.

 

Robert Curzon, viajando pelo Levante nos anos de 1830 à procura de manuscritos, que pudesse comprar por preço de barganha, ficou desconcertado ao descobrir que o Patriarca de Constantinopla nunca tinha ouvido falar do Arcebispo de Canterbury. As questões que se põe, certamente, mudaram, desde então. As viagens tornaram-se, incomparavelmente, mais fáceis; as barreiras físicas foram derrubadas. As viagens não são sequer necessárias atualmente: um cidadão na Europa Ocidental ou da América não precisa mais deixar seu país para observar a Igreja Ortodoxa em primeira mão. Gregos viajando para o leste por escolha ou necessidade econômica, e Eslavos que tomaram a direção do leste fugindo às perseguições, trouxeram sua igreja consigo, estabelecendo, por toda a Europa e América, uma malha de dioceses, paróquias, colégios teológicos e mosteiros. Mais importante de tudo, em muitas comunidades diferentes, no século presente houve um crescimento de um desejo sem precedente e compelidor pela unidade visível de todos os Cristãos; e isso deu origem a um novo interesse pela Igreja Ortodoxa. A diáspora Grego-Russa espalhou-se pelo mundo ao mesmo tempo em que cristãos ocidentais, em sua preocupação pela unidade, tomavam consciência da relevância da Ortodoxia, e ansiavam por conhecer mais sobre ela. No diálogo ecumênico, a contribuição da Igreja Ortodoxa tem se mostrado surpreendentemente iluminadora, precisamente porque os ortodoxos têm uma história diferente da história dos ocidentais, tendo sido capazes de abrir novas linhas de pensamento e sugerir soluções de há muito esquecidas para antigas dificuldades.

 

Nunca faltaram ao Ocidente homens cuja concepção de cristandade não era restrita a Canterbury, Genebra e Roma; porém, no passado, tais homens eram vozes que clamavam no deserto. Agora não é mais assim. Os efeitos de uma alienação que durou mais do que nove séculos, não podem ser superados em curto prazo, mas ao menos se deu início.

 

O que se entende por "Igreja Ortodoxa?” As divisões que resultaram na fragmentação presente da cristandade ocorreram em três estágios, a intervalos de aproximadamente quinhentos anos. O primeiro estágio da separação ocorreu no quinto e sexto séculos, quando as Igrejas Orientais "Menores" ou "Separadas" tornaram-se divididas do corpo principal dos cristãos. Essas Igrejas formaram dois grupos: a Igreja nestoriana da Pérsia e as cinco Igrejas monofisitas da Armênia, da Síria (denominada Igreja "Jacobita"), no Egito (a Igreja Copta da Etiópia e da Índia). Os nestorianos e monofisitas estiveram fora da consciência ocidental ainda mais completamente, do que vieram a estar fora da consciência da Igreja Ortodoxa mais tarde. Quando Rabban Sauma, um monge nestoriano de Pequim, visitou em 1288 (ele viajou até Bordeaux, onde deu comunhão para o Rei Eduardo I da Inglaterra), ele discutiu teologia com o Papa e com Cardeais em Roma, e parece que esses não se deram conta que de seu ponto de vista era o de um herético. Como resultado da primeira divisão, a Ortodoxia tornou-se restrita, em seu lado oriental, principalmente ao mundo de língua Grega. Ocorreu então a segunda separação, convencionalmente datada em 1054. O corpo principal dos cristãos torna-se então dividido em duas comunhões: na Europa ocidental a Igreja Católica Romana, sob o Papa de Roma; no Império Bizantino, a Igreja Ortodoxa do Oriente. A Ortodoxia estava agora limitada no seu lado Ocidental também. A terceira separação, entre Roma e os Reformadores no século XVI não vai nos ocupar diretamente aqui.

 

É interessante notar como coincidem as divisões culturais e eclesiásticas. O Cristianismo enquanto universal em sua missão tendeu, na prática, a estar associado com três culturas: a Semítica, a Grega e a Latina. Como resultado da primeira separação, os semíticos da Síria, com sua florescente escola de teólogos e escritores, foram afastados do resto da cristandade. Seguiu-se a segunda separação, que abriu uma fenda separando as tradições grega e latina no cristianismo. No entanto, não se deve concluir apressadamente que a Igreja Ortodoxa é exclusivamente grega e nada mais, tendo em vista que padres siríacos e latinos também têm lugar na tradição ortodoxa completa.

 

Enquanto a Igreja Ortodoxa tornava-se limitada, geograficamente, primeiro no Oriente e a seguir no Ocidente, ela expandia-se para o Norte. Em 863, São Cirilo e São Metódio, os Apóstolos dos Eslavos, viajaram para o Norte para realizar trabalhos missionários além das fronteiras do Império Bizantino, e seus esforços contribuíram para a conversão da Bulgária, Sérvia e Rússia. Enquanto o Império Bizantino encolhia, essas novas Igrejas cresciam em importância e, quando Constantinopla foi tomada pelos Turcos em 1453, o principado de Moscou estava pronto para assumir o lugar de Bizâncio como protetor do mundo Ortodoxo. Durante os últimos 150 anos houve uma reversão parcial dessa situação. Apesar de Constantinopla ainda permanecer em mãos Turcas, uma pálida sombra de sua glória anterior, a Igreja da Grécia está novamente livre; mas a Rússia e outros povos Eslavônicos passaram, por sua vez, a viver sob as regras de um governo não-cristão.

 

Estes são os principais estágios que determinaram o desenvolvimento externo da Igreja Ortodoxa. Geograficamente, sua atuação se deu, nos primórdios, na Europa Oriental, na Rússia e ao longo da costa oriental do Mediterrâneo. Ela é composta, atualmente, pelas seguintes Igrejas Auto-governadas ou autocéfalas:

 

Os Quatro Antigos Patriarcados: Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.

 

Apesar de muito reduzidas em tamanho, essas quatro Igrejas, por razões históricas, ocupam posição especial na Ortodoxia, tendo primazia em honra. Os chefes dessas quatro Igrejas usam o título de Patriarca.

 

As Dez Igrejas Autocéfalas: Rússia, Romênia, Sérvia, Bulgária, Geórgia, Chipre, Polônia, Albânia, Tchecoslováquia, Sinai.

 

Todas, exceto três dessas Igrejas - Tchecoslováquia, Polônia e Albânia - estão em países onde a população é inteiramente constituída de não-gregos; cinco das outras - Rússia, Sérvia, Bulgária, Tchecoslováquia, Polônia - são Eslavônicas. Os chefes das Igrejas Russa, Romena, Sérvia e Bulgária são conhecidos pelo título de Patriarcas. O chefe da Igreja da Geórgia é chamado Patriarca Católico; os das outras Igrejas são chamados de Arcebispos ou Metropolitas.

 

Existem ainda várias outras Igrejas que, apesar de autogovernadas, não atingiram total independência. Elas são denominadas autônomas, não autocéfalas. São elas: Finlândia, Japão e China.

 

Existem províncias eclesiásticas na Europa Ocidental, nas Américas do Norte e do Sul e na Austrália que dependem de diferentes Patriarcados e de Igrejas Autocéfalas. Em algumas áreas, essa "diáspora" ortodoxa está lentamente adquirindo autogoverno. Em particular, passos têm sido dados para formar uma Igreja Ortodoxa Autocéfala na América, mas isso ainda não foi oficialmente aceito pela maioria das outras Igrejas Ortodoxas.

 

A Igreja Ortodoxa é assim uma família de Igrejas autogovernadas. Estão agrupadas não por uma organização centralizada, não por um único Prelado exercendo poder absoluto sobre todo o corpo da Igreja, mas pela dupla ligação: unidade da fé e comunhão nos sacramentos. Cada Igreja, ainda que independente, está em completa concordância com as outras quanto à doutrina, e entre elas existe uma completa comunhão sacramental. (Entre os russos ortodoxos existe certa divisão, mas nesse caso, a situação é totalmente excepcional e, espera-se, de caráter temporário). Não existe, na Ortodoxia, ninguém com uma posição equivalente a do Papa na Igreja Católica Romana. O Patriarca de Constantinopla é conhecido como Patriarca "Ecumênico" (ou universal) e, desde a cisma entre Oriente e Ocidente desfruta de uma posição de honra entre todas as comunidades ortodoxas; Ele não pode, no entanto, interferir nos assuntos internos de outras Igrejas. Seu lugar assemelha-se ao do Arcebispo de Canterbury, na comunidade Anglicana.

 

Esse sistema descentralizado de Igrejas locais independentes tem vantagens por ser altamente flexível e facilmente adaptadas a condições mutáveis. Igrejas locais podem ser criadas, suprimidas e restauradas de novo, com muito pouca perturbação para a vida da Igreja como um todo. Muitas dessas Igrejas locais são também Igrejas nacionais, pois, durante o passado, em países Ortodoxos, Igreja e Estado estavam unidos. Mas, enquanto um Estado independente freqüentemente possui sua própria Igreja Autocéfala, as divisões eclesiásticas, não necessariamente, coincidem com os limites geográficos dos Estados. A Geórgia, por exemplo, fica dentro da antiga União Soviética, mas não é parte da Igreja Russa, enquanto que os territórios dos quatro antigos Patriarcados estão, praticamente, em vários países diferentes. A Igreja Ortodoxa é uma Federação de Igrejas locais, que nem sempre são Igrejas nacionais. Ela não tem como sua base o princípio político da Igreja de Estado.

 

Entre as várias Igrejas existem, como pode ser visto, uma enorme variação em tamanho, com a Rússia em um extremo e Sinai no outro. As diferentes Igrejas também variam em idade, algumas datando desde os tempos Apostólicos, enquanto outros são mais novos que uma geração. A Igreja da Tchecoslováquia, por exemplo, só obteve sua autocefalia em 1951.

 

Essas são as Igrejas que fazem a comunhão Ortodoxa como ela é hoje. Elas são conhecidas, coletivamente, por vários títulos. Algumas vezes são chamadas de Gregas ou Greco-Russa; mas isso não é correto, pois existem milhares de Ortodoxos que não são nem Gregos, nem Russos. Os Ortodoxos, freqüentemente, chamam suas Igrejas de Igreja Ortodoxa Oriental, Igreja Católica Ortodoxa ou Igreja Católica Ortodoxa do Oriente, ou algo parecido. Esses títulos não devem ser mal entendidos, pois enquanto a Ortodoxia considera-se a verdadeira Igreja Católica, ela não é, no entanto, parte da Igreja Católica Romana; e apesar da Ortodoxia chamar-se de Oriental, não é algo limitado ao povo oriental. Outro nome muito empregado é Santa Igreja Ortodoxa. Talvez seja menos confuso e mais conveniente, usar-se o título mais curto: Igreja Ortodoxa.

 

A Ortodoxia clama ser universal - não alguma coisa exótica e oriental, mas simplesmente Cristianismo. Por conta das falhas humanas e dos acidentes da história, a Igreja Ortodoxa esteve no passado muito restrito a certas áreas geográficas. Ainda assim, para os próprios Ortodoxos, sua Igreja é algo mais que um grupo de corpos locais. A palavra "Ortodoxia" tem duplo significado de "crença correta" ou "glória correta" (ou "louvação correta"). Os Ortodoxos por isso, fazem algo que, a primeira vista, pode ser uma afirmação surpreendente: eles olham sua Igreja como a Igreja que guarda e ensina a verdadeira doutrina sobre Deus e que O glorifica com a correta louvação, isto é, nada menos do que a Igreja de Cristo na Terra. Como essa posição é entendida e o que os Ortodoxos pensam sobre os outros Cristãos que não pertencem à sua Igreja são questões que fazem parte do objetivo deste livro e que se buscará esclarecer.

 

2. Os Primórdios

 

Na aldeia há uma capela escavada na terra com sua entrada cuidadosamente camuflada. Quando um padre visita a aldeia secretamente, é aí que ele celebra a Liturgia e outros serviços litúrgicos. Seus moradores acham, algumas vezes, que estão a salvo da observação da polícia. Toda a população da aldeia se reúne na capela, com exceção dos que ficam do lado de fora vigiando para dar o alerta, caso aviste a aproximação de estranhos. Outras vezes os serviços são realizados em turnos diferentes...  

 

A cerimônia de Páscoa foi realizada num apartamento pertencente a uma instituição do governo. A entrada de alguém só era possível com um passe especial que eu obtive para mim e minha filha pequena. Havia cerca de trinta pessoas presentes, entre as quais algumas eram minhas conhecidas. Um velho padre celebrou a cerimônia - a qual jamais hei de esquecer. "Cristo ressuscitou!" Cantamos baixinho, mas cheios de alegria. A alegria que senti naquela cerimônia na "Igreja da Catacumba" me dá forças para viver ainda hoje. 

 

Essas são duas histórias da vida da Igreja na Rússia pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Com pequenas alterações, poderiam facilmente ter sido extraídas de descrições da fé cristã nos tempos de Nero ou Diocleciano. Elas ilustram o caminho no qual, ao longo de dezenove séculos, a história cristã percorreu um ciclo completo. Os cristãos de hoje encontram-se muito mais próximos da Igreja dos primeiros tempos do que seus avós estiveram. 

 

O cristianismo começou como a religião de uma pequena minoria dentro de uma sociedade predominantemente não cristã - o que está voltando a ser novamente. A Igreja em seus primórdios era distinta e separada do Estado; hoje, em vários países, um após outro, a aliança tradicional entre Igreja e Estado está chegando ao fim. 

 

O Cristianismo era, inicialmente, uma religião ilícita, uma religião proibida e perseguida pelo governo; hoje, a perseguição não é mais uma realidade do passado apenas, não sendo de forma alguma impossível que nos trinta anos entre 1918 e 1948 tenham morrido mais cristãos por sua Fé do que nos trezentos anos que se seguiram à Crucifixão de Cristo.

 

Membros da Igreja Ortodoxa em particular foram muito mais afetados por tais acontecimentos, uma vez que a grande maioria deles vive atualmente em países comunistas, sob governos anticristãos. 

 

O primeiro período da história cristã, do dia de Pentecostes à conversão de Constantino, é de especial relevância para a Ortodoxia contemporânea. 

 

"De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo" (At. 2, 2 - 4). 

 

Assim começa a história da Igreja de Cristo, com a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos em Jerusalém durante a festa de Pentecostes, o sétimo Domingo após a primeira Páscoa. Naquele mesmo dia, por causa da pregação de São Pedro, três mil homens e mulheres foram batizados e a primeira comunidade cristã em Jerusalém estava formada. Pouco tempo depois os membros da Igreja de Jerusalém ficaram amedrontados pela perseguição que se seguiu ao apedrejamento de Santo Estevão. 

 

"Ide, pois”, Cristo disse, "ensinai a todas as nações" (Mt. 28, 19). 

 

Obedientes a esta ordem eles pregavam aonde iam, primeiro para os judeus e, em seguida, para os gentios também. Algumas histórias dessas viagens apostólicas são registradas por São Lucas no livro dos Atos; outras estão preservadas na tradição da Igreja. 

 

As lendas que cercam os apóstolos talvez não sejam sempre literalmente verdadeiras, mas é, de qualquer forma, certo que num tempo incrivelmente curto pequenas comunidades cristãs nasceram em todos os principais centros do Império Romano e mesmo em lugares além das fronteiras romanas.O Império pelo qual esses primeiros missionários cristãos viajavam era, principalmente em sua parte oriental, um império de cidades. Isto determinou a estrutura administrativa da Igreja primitiva. A unidade básica era a comunidade de cada cidade, governada pelo seu próprio bispo; para assistir aos bispos havia presbíteros ou padres e diáconos. A zona rural correspondente dependia da Igreja da cidade. Este modelo, com o ministério triplo de bispos, padres e diáconos, já era largamente empregado pelo final do primeiro século. Podemos ver isto nas sete breves cartas que Santo Inácio, bispo de Antioquia, escreveu por volta do ano 107 enquanto viajava para Roma para ser martirizado. Inácio dá ênfase a duas coisas em particular: o bispo e a Eucaristia; ele via a Igreja como hierárquica e sacramental. 

 

"O bispo em cada Igreja”, escreveu, "preside no lugar de Deus. Que ninguém faça nada que diz respeito à Igreja sem o bispo... Onde quer que o bispo apareça, que esteja o povo como se Jesus Cristo lá estivesse. Lá está a Igreja Católica”. 

 

E é a primeira e distinta tarefa do episcopado, celebrar a Eucaristia, "a medianeira da imortalidade". As pessoas hoje pensam na Igreja como uma organização mundial, na qual cada corpo local compõe uma parte de um todo maior e mais abrangente. Inácio não via a Igreja dessa forma. Para ele a comunidade local é a Igreja. Ele via a Igreja como uma sociedade Eucarística, que só realiza sua natureza verdadeira quando celebra a Santa Ceia, recebendo Seu Corpo e Seu Sangue no sacramento. Mas a Eucaristia é algo que só pode acontecer localmente - em cada comunidade particular reunida em torno de seu bispo; e, a cada celebração local da Eucaristia, é o Cristo inteiro quem está presente, não apenas parte d’Ele. Portanto, cada comunidade local, quando celebra a Eucaristia a cada domingo, é a Igreja em sua totalidade.Os ensinamentos de Santo Inácio têm um lugar permanente na tradição Ortodoxa. 

 

A Ortodoxia ainda vê a Igreja como uma sociedade Eucarística, cuja organização externa, embora necessária, é secundaria em relação à sua vida interna, sacramental; e a Ortodoxia ainda enfatiza a importância fundamental da comunidade local na estrutura da Igreja. Para aqueles que assistem a uma Liturgia Pontifical Ortodoxa (A Liturgia: Este termo é normalmente usado por Ortodoxos em referência ao Ofício da Santa Comunhão, a Missa), quando o bispo se coloca no meio da Igreja, cercado pelo seu rebanho, a imagem de Santo Inácio de Antioquia, do bispo como centro da unidade na comunidade local, vai aparecer com particular clareza. 

 

Mas além da comunidade local, existe também a unidade maior da Igreja. Este segundo aspecto é desenvolvido nos escritos de um outro bispo mártir, São Cipriano de Cartago (morto em 258). Cipriano via todos os bispos como que compartilhando de um só episcopado, de tal forma que cada um possuía não uma parte, mas a totalidade dele. 

 

"O episcopado”, escreveu, "é um todo único, do qual cada bispo participa plenamente. Assim a Igreja é um todo, embora ela se descobre em inumeráveis Igrejas, na medida em que se torna mais fértil."

 

 Existem muitas Igrejas mas uma só Igreja; muitos bispos mas só um episcopado.Houve muitos outros nos primeiros três séculos da Igreja que, como Cipriano e Inácio, morreram martirizados. As perseguições é verdade, tiveram freqüentemente um caráter local e duravam pouco tempo. Embora houvesse longos períodos em que as autoridades romanas tinham para com o Cristianismo medidas de tolerância, a ameaça de perseguição estava sempre presente e os cristãos sabiam que, de um momento para o outro, ela podia tornar-se realidade. A idéia do martírio ocupava um lugar central na espiritualidade dos primeiros cristãos. Eles viam sua Igreja como fundada sobre sangue - não apenas o Sangue de Cristo, mas o sangue daqueles "outros Cristos": os mártires. 

 

Nos séculos seguintes, quando a Igreja tornou-se "estabelecida" e não sofria mais perseguições, a idéia do martírio não desapareceu, mas tomou outras formas: a vida monástica, por exemplo, é freqüentemente vista pelos escritores gregos, como um equivalente do martírio. A mesma abordagem é encontrada também no ocidente: por exemplo, no texto céltico - uma homilia irlandesa do século VII - no qual a vida ascética é comparada com o caminho do mártir: 

 

Existem três formas de martírio que contam como uma Cruz para o homem: o martírio branco, o martírio verde e o martírio vermelho. O martírio branco consiste no homem abandonar tudo o que ele ama pelo amor de Deus... O martírio verde consiste em, por meio de jejum e trabalho, se libertar dos desejos perniciosos; ou passar por trabalhos árduos em penitência e arrependimento. O martírio vermelho consiste em suportar a Cruz ou a morte pelo amor de Cristo. Em vários períodos na história da Ortodoxia, a perspectiva do martírio vermelho foi bastante remota e as formas verde e branca prevaleceram. Embora também tenha havido épocas, sobretudo no presente século, quando os Cristãos Ortodoxos foram novamente chamados para suportar o martírio vermelho de sangue. 

 

Era então natural que os bispos, como Cipriano enfatizava, que compartilhavam de um episcopado, se reunissem em concílios para discutir seus problemas comuns. A Ortodoxia sempre deu grande importância à realização dos concílios na vida da Igreja. A Ortodoxia crê que o concílio é o principal órgão através do qual Deus guia seu povo e considera-se a Igreja Católica como uma Igreja essencialmente conciliar. (De fato, em russo o adjetivo soborny tem o duplo significado de "católica" e "conciliar”, enquanto o substantivo correspondente, sobor, significa "igreja" e "concílio"). 

 

Na Igreja não existe ditadura nem individualismo, mas harmonia e unanimidade; as pessoas permanecem livres, mas não isoladas, uma vez que estão unidas no amor, na fé e na comunhão sacramental. Num concílio, essa idéia de harmonia e livre unanimidade pode ser vista realizada na prática. Num concílio verdadeiro nem um único membro impõe arbitrariamente sua vontade aos outros, mas cada um consulta os outros e, desta forma, todos livremente alcançam um "consenso”. Um concílio é uma incorporação viva da natureza essencial da Igreja. 

 

O primeiro concílio da história da Igreja é descrito nos Atos, 15. Com a presença dos Apóstolos, realizou-se em Jerusalém para decidir de que forma os gentios convertidos deveriam se submeter à Lei de Moisés. Os Apóstolos, quando finalmente chegaram a uma decisão, falaram com palavras que, em outras circunstâncias, poderiam parecer presunçosas: 

 

"Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós..." (Atos 15:28). 

 

Os concílios posteriores ousaram falar com a mesma confiança. Um indivíduo, isoladamente, hesitaria em dizer: "Pareceu bem ao Espírito Santo e a mim"; mas quando reunidos num concílio, os membros da Igreja podem juntos pretender uma autoridade que individualmente nenhum deles possui. O concílio de Jerusalém, reunido com líderes de toda a Igreja, foi uma reunião excepcional, que não encontra paralelo até o Concílio de Nicéia em 325. Mas na época de Cipriano, tinha-se tornado comum a realização de concílios locais, dos quais participavam os bispos de uma determinada província do Império Romano. Um concílio local desse tipo era normalmente realizado na capital provincial, sob a presidência do bispo da capital, a quem era dado o título de Metropolita. Por ocasião do terceiro século, os concílios cresceram em amplitude e começaram a incluir bispos não só de uma, mas de várias províncias. Essas reuniões maiores tendiam a acontecer nas principais cidades do Império, como Alexandria ou Antioquia; e assim aconteceu que os bispos de certas cidades começaram a adquirir uma importância acima dos metropolitas provinciais. Mas naquele tempo nada ainda havia sido decidido sobre a situação exata dessas grandes sedes. Nem durante o terceiro século essa contínua expansão de concílios lhes conferiu um caráter definitivo. Até aquele momento (com exceção do Concílio Apostólico) havia ocorrido apenas concílios locais de maior ou menor extensão, mas nenhum concílio "geral”, formado por bispos de todo o mundo cristão e pretendendo falar em nome de toda a Igreja. 

 

Em 312 ocorreu um evento que transformou completamente a situação exterior da Igreja. Ao cavalgar através da França com seu exército, o Imperador Constantino olhou para o céu e viu uma cruz luminosa em frente ao sol. Na cruz havia uma inscrição: "Com este símbolo vencerás”. Como resultado dessa visão, Constantino tornou-se o primeiro imperador romano a abraçar a fé cristã. Naquele dia na França iniciou-se uma série de acontecimentos que determinaram o fim do primeiro principal período da Igreja e levaram à criação do Império Cristão de Bizâncio.

 

3. Bizâncio, a Igreja dos Sete Concílios

 

A Igreja dos Sete Concílios "Tudo professa que existem sete Concílios Ecumênicos e santos, e estes são os sete pilares da fé do Verbo Divino nos quais Ele erigiu sua santa morada, a Igreja Ecumênica e Católica" (João II, Metropolita da Rússia, 1800-1889).

 

Constantino se coloca como um divisor na história da Igreja. Com sua conversão, o tempo dos martírios e das perseguições chegou ao fim, e a Igreja das Catacumbas tornou-se a Igreja do Império. O primeiro grande efeito da visão de Constantino foi o assim chamado "Edito" de Milão, que ele e seu companheiro Imperador Licínio editaram em 313, proclamando a tolerância oficial à fé cristã. E, embora, a princípio, Constantino garantisse não mais do que tolerância, ele em breve deixou claro que tinha a intenção de favorecer o cristianismo sobre todas as outras religiões toleradas no Império Romano. Teodósio, no prazo de cinqüenta anos após a morte de Constantino, havia levado a cabo sua política: em sua legislação ele tornou o cristianismo não apenas a mais favorecida, mas a única religião reconhecida do Império. A Igreja agora estava estabelecida. "Vocês não estão autorizados a existir”, as autoridades romanas disseram uma vez aos cristãos. Agora era a vez do paganismo ser suprimido.

 

A visão da cruz que teve Constantino, levou-o também durante sua existência, a tomar duas outras atitudes, igualmente oportunas para o posterior desenvolvimento do cristianismo. Primeiro, em 324 ele decidiu mudar a capital do Império Romano em direção ao Oriente, da Itália para as margens do Bósforo. Ali, no local da cidade grega de Bizâncio, ele construiu uma nova capital, a qual chamou "Constantinoupolis”, seu nome. Os motivos dessa mudança foram em parte econômicos e políticos, mas foram também religiosos; a velha Roma estava muito impregnada com associações pagãs para ser o centro do Império Cristão que ele imaginava. Na Nova Roma, as coisas seriam diferentes após a solene inauguração da cidade em 330, ele decretou que em Constantinopla jamais seriam realizados ritos pagãos. A nova capital de Constantino exerceu uma influência decisiva no desenvolvimento da história da Ortodoxia.

 

Em seguida Constantino reuniu o primeiro Concílio Geral ou Ecumênico da Igreja de Cristo em Nicéia em 325. Se for para o Império Romano ser um Império Cristão, Constantino desejava vê-lo firmemente estruturado na fé Ortodoxa. Este era o dever do Concílio de Nicéia, elaborar a essência de tal fé. Nada poderia ter simbolizado mais claramente a nova relação entre a Igreja e o Estado do que as aparentes circunstâncias dessa reunião em Nicéia. O próprio Imperador presidiu, "como um mensageiro celeste de Deus”, como um dos presentes, Euzébio, Bispo de Cesaréia, o definiu. Ao término do Concílio os bispos jantaram com o Imperador. "As circunstâncias do banquete”, escreveu Euzébio (que tinha a tendência de se impressionar com tais coisas) "foram esplêndidas além de qualquer descrição. Guarnições da guarda pessoal e outras tropas rodeavam a entrada do palácio com as espadas desembainhadas e pelo meio destes, os homens de Deus entravam sem medo para os aposentos imperiais. Alguns faziam companhia ao Imperador à mesa, outros se reclinavam em divãs enfileirados em ambos os lados. Podia-se pensar tratar-se de uma pintura do reino de Cristo e de sonho em vez de realidade. As coisas certamente haviam mudado desde o tempo em que Nero usou cristãos como tochas vivas para iluminar seus jardins à noite. Nicéia foi o primeiro de sete Concílios Gerais; e este, assim como a cidade de Constantino, ocupa uma posição central na história da Ortodoxia”.

 

Os três acontecimentos - o Edito de Milão, a fundação de Constantinopla e o Concílio de Nicéia - marcam a maioridade da Igreja.

 

4. Os Primeiros Seis Concílios Ecumênicos - (325-681)

 

A vida da Igreja no período inicial bizantino é dominada pelos Sete Concílios Gerais. Estes Concílios preencheram uma tarefa dupla. Primeiro, eles esclareceram e articularam a organização visível da Igreja, tornando clara a posição das cinco grandes Sedes ou Patriarcados, como vieram a ser conhecidos. Segundo e mais importante, os Concílios definiram de vez por toda os ensinamentos da Igreja sobre as doutrinas fundamentais da fé cristã - a Trindade e a Encarnação. Todos os cristãos concordam em encarar tais coisas como "mistérios" os quais se encontram além da linguagem e compreensão humanas. Os bispos, quando redigiam definições nos Concílios, não intencionavam explicar o mistério, apenas procuravam eliminar certas maneiras erradas de falar e raciocinar sobre ele. Para impedir que os homens se desviassem em erro ou heresia, eles tão somente esclareciam o modo correto de se referir ao mistério.

 

As discussões nos Concílios às vezes parecem abstratas e remotas, embora tenham uma finalidade prática: a salvação do homem. O homem, como ensina o Novo Testamento, é separado de Deus pelo pecado, e não pode por seus próprios meios romper a barreira que o pecado criou. Deus, portanto tomou a iniciativa: tornou-se homem, foi crucificado, e ressuscitou, libertando desta forma a humanidade da prisão do pecado e da morte. Esta é a mensagem central da fé cristã e é a mensagem de redenção que os Concílios estavam preocupados em salvaguardar. As heresias eram perigosas e exigiam condenação, pois prejudicavam o ensinamento do Novo Testamento, criando uma barreira entre o homem e Deus, tornando assim impossível para o homem atingir a salvação total.

 

São Paulo exprimiu essa mensagem de redenção em termos de participação. Cristo participou de nossa pobreza para que pudéssemos participar das riquezas de sua divindade: "Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre pelo amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos" (2 Coríntios 8:9). No Evangelho de São João é encontrada a mesma idéia de modo ligeiramente diferente.

 

Cristo declara que Ele deu a seus discípulos uma participação na divina glória e Ele ora para que possam alcançar a união com Deus: "Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado para que sejam um como nós o somos; eu neles e Tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que Tu me enviaste, e os amaste como também amaste a mim" (João 17:22-23). Os Padres Gregos tomaram este e outros textos similares em seu sentido literal e ousaram falar da "deificação" do homem (do grego theosis). Se é para o homem participar da glória de Deus, eles dizem, se é para que sejam "aperfeiçoados na unidade" com Deus, isto significa de fato que o homem precisa ser "deificado". Ele é chamado para tornar-se, pela graça, o que Deus é por natureza. A este respeito, Santo Atanásio resumiu a finalidade da Encarnação com o seguinte: "Deus tornou-se homem para que possamos nos tornar Deus”.Assim, se este "tornar-se Deus, esta theosis, é possível, Cristo o Salvador deve ser ambos, completamente homem e completamente Deus. Ninguém a não ser Deus pode salvar o homem. Portanto, se Cristo é quem salva, ele deve ser Deus. Mas apenas se ele for verdadeiramente homem, como somos, podemos nós homens participar naquilo que ele fez por nós. É firmada uma ponte entre Deus e o homem pelo Cristo Encarnado, homem-Deus. ”E acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem" (João 1:51). Não apenas os Anjos usam aquela escada mas toda a raça humana.

 

Cristo deve ser completamente Deus e completamente homem. Cada heresia, a seu tempo, nega alguma parte desta afirmação vital. Ou Cristo foi criado menos do que Deus (arianismo); ou sua humanidade era tão afastada de sua divindade que ele tornou-se duas pessoas em vez de uma (nestorianismo), ou Ele não era apresentado como verdadeiramente homem (monofisismo, monotelismo). Cada Concílio defendia esta afirmação. Os dois primeiros, ocorridos no século IV, concentraram-se na primeira parte (de que Cristo deve ser completamente Deus) e formularam a doutrina da Trindade. Os quatro seguintes nos séculos V, VI e VII, concentraram-se na segunda parte (a plenitude da humanidade de Cristo) e também procuraram explicar como humanidade e divindade podiam ser unidas numa única pessoa. O sétimo Concílio, em defesa dos Santos Ícones, parece, à primeira vista, afastado da questão; mas, como os primeiros seis, estava basicamente relacionado com a Encarnação e a salvação do homem.

 

4.1 - Nicéia: I Concílio Ecumênico

 

A principal realização do Concílio de Nicéia em 325 foi a condenação do arianismo. Arius, um padre de Alexandria, sustentava que o Filho era inferior ao Pai e, ao traçar uma linha divisória entre Deus e a criação, ele colocou o Filho entre as coisas criadas: uma criatura superior, é verdade, mas uma criatura. Sua intenção, sem dúvida, era proteger a unidade e transcendência de Deus, mas o efeito de seus ensinamentos, fazendo Cristo menos do que Deus, tornava a deificação do homem impossível. Apenas se Cristo for verdadeiramente Deus, o Concílio respondeu, poderá nos unir a Deus, pois ninguém além de Deus poderá abrir para o homem o caminho da união. Cristo é "um em essência" (homoousios) com o Pai. Ele não é um semideus ou uma criatura superior, mas Deus da mesma forma que o Pai é Deus: "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, o Concílio proclamou no Credo que redigiu, "gerado não criado, consubstancial ao Pai."O Concílio de Nicéia tratou também da organização visível da Igreja. Fazendo referência aos três grandes centros: Roma, Alexandria e Antioquia (Cânone VI). Ele também dispôs que à Sé de Jerusalém, mesmo permanecendo sujeita ao Metropolita de Cesaréia, deveria ser dado o próximo lugar de honra após essas três (Cânone VII). Constantinopla obviamente não foi mencionada, uma vez que ainda não havia sido oficialmente inaugurada como capital, o que somente aconteceu cinco anos depois; ela continuava sujeita como antes, ao Metropolita de Heraclea.

 

4.2 - I Constantipolitano: II Concílio Ecumênico

 

O trabalho de Nicéia foi retomado pelo segundo Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla em 381. Este Concílio aumentou e adaptou o Credo de Nicéia, desenvolvendo em particular os ensinamentos a respeito do Espírito Santo, de quem afirmava ser Deus da mesma forma que o Pai e o Filho o são: "que procede do Pai e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória”. O Concílio alterou também o conteúdo do sexto Cânone de Nicéia. A posição de Constantinopla, agora capital do Império, não podia mais ser ignorada, e lhe foi designado o segundo lugar, após Roma e antes de Alexandria. "O Bispo de Constantinopla deve ter prerrogativas de honra após o Bispo de Roma, pois Constantinopla é a nova Roma" (Cânone III).Por trás das definições do Concílio existia o trabalho de teólogos que davam precisão às formulações que o Concílio empregava. Era a suprema realização de Santo Atanásio de Alexandria, extrair todas as implicações das palavras-chaves no Credo de Nicéia; homoousios, um na essência ou substância, consubstancial. Complementando seu trabalho havia o dos três Padres Capadócios, São Gregório de Nazianzo, conhecido na Igreja Ortodoxa como Gregório, o Teólogo (329-390), São Basílio, o Grande (330-379) e seu irmão caçula São Gregório de Nissa (morto em 394). Enquanto Atanásio enfatizava a unidade de Deus - Pai e Filho são um em essência (ousia) - os capadócios enfatizavam a trindade divina - Pai, Filho e Espírito Santo são três pessoas (hypostaseis). Preservando um equilíbrio delicado entre a trindade e a unidade em Deus, eles deram significado total ao clássico sumário da doutrina Trinitária, três pessoas em uma essência. Nunca até então a Igreja havia possuído quatro teólogos de tal envergadura em uma única geração.

 

4.3 - Éfeso: III Concílio Ecumênico

 

Após 381 o arianismo deixou rapidamente de ser uma questão empolgante, exceto em certas partes da Europa Oriental. O aspecto polêmico do trabalho do Concílio está no seu terceiro Cânone, do qual se ressentiram igualmente Roma e Alexandria. A Velha Roma se questionava aonde as pretensões da Nova Roma terminariam. Não poderia Constantinopla vir a reivindicar o primeiro lugar? Roma decidiu ignorar o Cânone ofensivo e somente no Concílio de Latrão (1215) o Papa reconheceu formalmente a reivindicação de Constantinopla de segundo lugar. (Constantinopla encontrava-se naquela época nas mãos dos Cruzados e sob a legislação de um Patriarca latino). Mas o Cânone era igualmente um desafio para Alexandria, que até então havia ocupado o primeiro lugar no Oriente. Os setenta anos seguintes testemunharam um agudo conflito entre Constantinopla e Alexandria e, por um tempo, a vitória foi para a última. O primeiro grande sucesso de Alexandria foi no Sínodo de Oak, quando Teófilo de Alexandria garantiu a deposição e o exílio do Bispo de Constantinopla, São João Crisóstomo, "João Boca de Ouro" (344-407). Um pregador fluente e eloqüente - seus sermões duravam freqüentemente uma hora ou mais.

 

João expressava de forma popular as idéias teológicas, formuladas por Atanásio e pelos Capadócios. Um homem de vida austera e meticulosa, inspirado por uma profunda, compaixão pelos pobres e por um ardoroso zelo por justiça social. De todos os Padres ele talvez seja o mais amado da Igreja Ortodoxa, e o que tem seus trabalhos mais lidos.

 

O segundo grande sucesso de Alexandria foi conseguido pelo sobrinho e sucessor de Teófilo, São Cirilo de Alexandria (morto em 444), que provocou a queda de outro Bispo de Constantinopla, Nestório, no Terceiro Concílio Ecumênico realizado em Efeso (431). Mas em Éfeso havia mais em jogo do que a rivalidade de duas Sés. Assuntos doutrinais, adormecidos desde 381 despertaram de novo, centralizados agora não mais na Trindade, mas na Pessoa do Cristo. Cirilo e Nestório concordavam que Cristo era completamente Deus, um da Trindade, mas divergiam em suas descrições 'de sua humanidade e em seus métodos de explicar' a união de Deus e homem numa única pessoa. Eles representavam diferentes tradições ou escolas de teologia. Nestório cresceu na escola de Antioquia, mantida a integridade da humanidade de Cristo, mas distinguia tão enfaticamente a humanidade e a divindade que parecia correr o risco de terminar, não com uma pessoa, mas com duas coexistindo no mesmo corpo. Cirilo, o protagonista da tradição oposta de Alexandria, partia da unidade da pessoa do Cristo, antes que da diversidade de sua humanidade e de sua divindade, mas falava da humanidade de Cristo com menos empolgação que o antioquino. Qualquer uma das teses, se pressionada com força, poderia tornar-se herética, e a Igreja necessitava de ambas para formar uma imagem equilibrada de todo o Cristo. Foi uma tragédia para o cristianismo que as duas escolas, em vez de se equilibrarem mutuamente, entraram em conflito.

 

Nestório precipitou a controvérsia se recusando chamar a Virgem Maria "Mãe de Deus" (Theotokos). Este título já era aceito na devoção popular, mas parecia a Nestório implicar uma confusão na humanidade de Cristo e sua divindade. Maria, ele questionava, e aqui fica evidente seu "separatismo" antioquino - somente deve ser chamada "Mãe do Homem" ou no máximo "Mãe do Cristo”, uma vez que ela é mãe apenas da humanidade de Cristo, não de sua divindade. Cirilo, apoiado pelo Concílio respondeu com o texto "E o Verbo se fez carne" (S. João l:4): Maria é a mãe de Deus, pois "ela deu à luz o Verbo de Deus feito carne." A quem Maria deu à luz não era um homem vagamente unido à Deus, mas uma única e íntegra pessoa, que é Deus e homem ao mesmo tempo. O nome Theotokos salvaguarda da unidade da pessoa do Cristo: negar-lhe tal titulo significa separar o Cristo Encarnado em dois, rompendo a ponte entre Deus e o homem e erigindo na pessoa do Cristo um muro de separação. Assim podemos ver que não apenas títulos de devoção estavam envolvidos em Efeso, mas a própria mensagem de salvação. A mesma primazia que a palavra homoousios ocupa na doutrina da Trindade, a palavra Theotokos tem na doutrina da Encarnação.

 

Alexandria teve outra vitória no segundo Concílio realizado em Efeso em 449, contudo essa reunião, ao contrário de sua predecessora de 431, não foi aceita pela totalidade da Igreja. Sentiu-se que o partido de Alexandria havia ido dessa vez longe demais. Dióscoro e Eutiques, levando a extremos os ensinamentos de Cirilo, sustentavam que em Cristo havia não apenas uma unidade de pessoas, mas uma única natureza - Monofisismo. Parecia a seus oponentes - embora os monofisitas negassem que se tratava de mera interpretação de seus pontos de vista - que tal modo de falar punha em perigo a totalidade da humanidade de Cristo, a qual no monofisismo, tornou-se tão amalgamada com sua divindade que poderia ser engolida como uma gota no oceano.

 

4.4 - Calcedônia: IV Concílio Ecumênico

 

Apenas dois anos mais tarde, o Imperador convocou na Calcedônia uma nova reunião de bispos, que a Igreja de Bizâncio e o ocidente consideram como o quarto Concílio Geral. O pêndulo agora voltou em direção aos antioquinos. O Concílio reagiu tenazmente contra a terminologia monofisita e afirmou que embora Cristo seja uma pessoa, existe n'Ele, não uma, mas duas naturezas. Os bispos aclamaram o Livro de São Leão o Grande, Papa de Roma (morto em 461), no qual as duas naturezas estão claramente distinguidas. Em sua proclamação de fé eles afirmavam sua crença em "um e verdadeiro Filho, perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem..., reconhecido em duas naturezas inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a diferença entre as naturezas não é de forma alguma removida por causa da união, ao contrário a propriedade peculiar de cada natureza é preservada e ambas combinam em uma pessoa e em uma hipostase”. A Definição de Calcedônia, pode-se notar, não é dirigida apenas aos monofisitas ("em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis), mas também aos seguidores de Nestório ("um e verdadeiro Filho... indivisível, inseparável).Mas Calcedônia foi mais do que uma derrota para a teologia de Alexandria: foi uma derrota para os apelos de Alexandria de governadora suprema no Oriente. O Cânone XXVIII de Calcedônia confirmou o Cânone III de Constantinopla, assegurando à Nova Roma o próximo lugar em honra logo após a velha Roma. Leão repudiou este cânone, mas o Oriente, desde então, reconheceu sua validade.

 

O Concílio também emancipou Jerusalém da jurisdição de Cesaréia e lhe deu o quinto lugar entre as grandes Sedes. O sistema mais tarde conhecido entre os ortodoxos como Pentarquia agora estava completo, por meio do qual cinco grandes Sedes da Igreja eram mantidas em honra especial e uma dada ordem de precedência foi estabelecida entre elas: em ordem decrescente: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.

 

Todas as cinco reivindicavam fundação apostólica. Os quatros primeiros eram as mais importantes cidades do Império Romano; a quinta foi anexada por tratar-se do lugar onde Cristo sofreu na cruz e ressuscitou dos mortos. O bispo de cada uma dessas cidades recebia o título de Patriarca. Os cinco patriarcados dividiam entre eles em esferas de jurisdição todo o mundo conhecido, com exceção de Chipre, a quem foi garantido independência pelo Concílio de Éfeso e permaneceu independente desde então.

 

Quando se fala da concepção ortodoxa de Pentarquia existem dois prováveis mal entendidos que devem ser evitados. Primeiro, o sistema de Patriarcas e Metropolitas é um assunto relativo à organização eclesiástica. Contudo, se olharmos a Igreja do ponto de vista não de ordem eclesiástica, mas de direito divino, então temos que dizer que todos os bispos são essencialmente iguais, por mais humilde ou nobre que seja a cidade que ele preside. Todos os bispos participam igualmente na sucessão apostólica, todos têm os mesmos poderes sacramentais e todos são divinamente indicados mestres da fé. Se surge uma disputa sobre doutrina, não é suficiente aos Patriarcas expressar sua opinião: todos os bispos das dioceses têm o direito de assistir ao Concílio Ecumênico, de falar e de votar. O sistema da Pentarquia não reduz a igualdade essencial de todos os bispos, nem priva cada comunidade local da importância que Inácio lhes havia assegurado.

 

Em segundo lugar, os ortodoxos acreditam que entre os cinco Patriarcas o Papa tem um lugar de destaque. A Igreja Ortodoxa não aceita a doutrina da autoridade papal, publicada nos decretos do Concilio Vaticano de 1870, e ensinada hoje na Igreja Católica Romana; mas ao mesmo tempo, a Ortodoxia não nega à Santa e Apostólica Sé de Roma, uma primazia de honra, junto com o direito (sob certas condições) de atender chamados de todas as partes da cristandade. Note que usamos a palavra "primazia”, não "supremacia."

Os ortodoxos consideram o Papa corno o Bispo "que preside no amor," para adaptar uma frase de Santo Inácio: o erro de Roma, assim crêem os ortodoxos - foi tornar essa primazia ou "presidência de amor" em supremacia de jurisdição e força externa.Esta primazia que Roma goza tem sua origem em três fatores. Primeiro, Roma foi a cidade onde São Pedro e São Paulo foram martirizados e onde Pedro foi bispo. A Igreja Ortodoxa reconhece Pedro como o primeiro entre os apóstolos: ela não esquece os célebres "textos Petrinos" nos Evangelhos (Mateus 16:8-19; Lucas 22:2; João 21:5-17) - embora os teólogos ortodoxos não entendam estes textos da mesma forma que os comentaristas católicos romanos modernos. E enquanto muitos teólogos ortodoxos diriam que não apenas o Bispo de Roma, mas todos os bispos são sucessores de Pedro, muitos deles ao mesmo tempo admitem que o Bispo de Roma é sucessor de Pedro de uma forma especial.

 

Em segundo, a sé de Roma também possuía sua primazia na posição ocupada pela cidade de Roma no Império: ela era a capital, a cidade principal do mundo antigo, e como tal em certa medida ela continuou a ser mesmo após a fundação de Constantinopla.

 

Em terceiro embora houvesse ocasiões em que o Papa caisse em heresia, de um modo geral durante os oito primeiros séculos da história da Igreja, a sé romana se destacava pela pureza de sua fé: outros patriarcados oscilavam durante as grandes disputas doutrinais, mas Roma geralmente permanecia firme. Quando bastante pressionada na batalha contra os heréticos, os homens sabiam que podiam confiar no Papa. Não apenas o Bispo de Roma, mas todo bispo é indicado por Deus para ser um mestre da fé; seja porque a sé de Roma havia na prática ensinado a fé com uma destacada lealdade a verdade, era acima de tudo à Roma que os homens pediam orientação nos primeiros séculos, da Igreja.

Mas como com os Patriarcas, também com o Papa; a primazia assegurada por Roma não sobrepõe a igualdade essencial de todos os bispos. O Papa é o primeiro bispo na Igreja - mas ele é o primeiro entre iguais.

 

Éfeso e Calcedônia foram a base da Ortodoxia, mas formam também um marco de ofensas. Os arianos se reconciliaram gradualmente e não formaram um cisma duradouro. Mas até os dias de hoje existem cristãos nestorianos que não aceitam as decisões de Efeso e monofisitas que não aceitam as de Calcedônia. Os nestorianos em sua maioria ficaram fora do Império e se ouviu muito pouco a respeito deles na história bizantina. Contudo, grande número dos monofisitas, particularmente no Egito e Síria, ficaram súditos do Imperador, e numerosos e mal sucedidos esforços foram feitos para trazê-los de volta à comunhão com a Igreja de Bizâncio. Como acontece com freqüência, diferenças teológicas tornam-se mais amargas por tensões nacionais e culturais. Egito e Síria, ambos predominantemente não gregos na língua e cultura, se ressentiam do poder da grega Constantinopla, tanto em questões religiosas como políticas. Assim, um cisma eclesiástico foi reforçado por separatismo político. Não fossem por tais fatores teológicos ambos os lados poderiam talvez ter alcançado uma compreensão teológica após Calcedônia. Estudiosos modernos estão inclinados a pensar que a diferença entre monofisitas e calcedônios foi basicamente de terminologia: os dois partidos usavam linguagem diferente, mas intimamente ambos estavam preocupados em manter as mesmas crenças.

 

4.5 - V e VI Concílios Ecumênicos

 

A Definição de Calcedônia foi suplementada pelos dois concílios seguintes, ambos realizados em Constantinopla. O quinto Concílio Ecumênico (553) reinterpretou os decretos de Calcedônia de um ponto de vista alexandrino e procurou explicar em termos mais construtivos do que Calcedônia havia usado, como as duas naturezas de Cristo se uniram para formar uma única pessoa. O sexto Concílio Ecumênico (680-1) condenou a heresia monotelista, uma nova forma de monofisismo. Os monotelistas argumentavam que embora Cristo tenha duas naturezas e sendo Ele uma única pessoa, ele tem apenas uma vontade. O Concílio respondeu que se Ele tem duas naturezas, então Ele deve ter duas vontades. Os monotelistas como os monofisitas depreciavam a totalidade da humanidade de Cristo, uma vez que humanidade sem vontade humana seria incompleta, uma mera abstração. Uma vez que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, Ele deve ter uma vontade humana assim como uma divina.

 

Durante os cinqüenta anos antes do encontro do sexto concílio, Bizâncio confrontou um repentino e alarmante acontecimento: o surgimento do Islam. O fato mais surpreendente sobre a explosão do Islam é sua velocidade. Quando o Profeta morreu em 632, sua autoridade pouco se estendia além de Hejaz. Mas em quinze anos seus seguidores árabes haviam tomado a Síria, Palestina e Egito; nos próximos cinqüenta anos eles estavam nos muros de Constantinopla e quase capturaram a cidade; em cem anos haviam varrido o Norte da África, avançado através da Espanha, e forçado a Europa ocidental a lutar por sua vida na batalha de Poitiers. As invasões árabes foram chamadas “uma explosão centrífuga, dirigindo em todas as direções pequenos corpos de cavaleiros montados, em guerra de comida, saque e conquista. Os antigos impérios não estavam em condições de resistir a eles. O cristianismo sobreviveu, mas com dificuldades. Os bizantinos perderam suas possessões orientais e os três Patriarcados de Alexandria, Antioquia e Jerusalém passaram para controle dos infiéis; com o Império Cristão do Oriente, o Patriarcado de Constantinopla estava agora sem rival. Desde então, Bizâncio nunca mais se viu livre dos ataques dos maometanos e embora tenha resistido mais oito séculos ao final ela sucumbiu”.

 

6. Santos, Monges e Imperadores

 

Com muita propriedade, Bizâncio foi chamada "o ícone da Jerusalém celeste”. A religião fazia parte de cada aspecto da vida bizantina, Os feriados bizantinos eram festas religiosas; as corridas realizadas no circo começavam com o canto de hinos; seus contratos comerciais invocavam a Trindade e eram marcados com o sinal da cruz. Hoje em dia, numa época não teológica, é impossível imaginar o entusiasmo que se tinha por questões religiosas em toda a sociedade, tanto os leigos como o clero, tanto os pobres e sem instrução, como a corte e os estudiosos. Gregório de Nissa descreve as intermináveis discussões teológicas em Constantinopla à época do segundo Concílio Ecumênico:

 

Toda a cidade está repleta, os quarteirões, as praças, as estradas, as alamedas, andarilhos, cambistas, feirantes: todos estão ocupados discutindo. Se você pede troco a alguém, ele filosofa a respeito do Criado e do Incriado; se você pergunta o preço do pão, obtém como resposta que o Pai é superior e o Filho inferior; se você pergunta "meu banho está pronto?" o criado responde que o Filho foi criado do nada.

 

Este relato curioso nos mostra a atmosfera na qual o Concílio se realizou. As paixões surgidas eram por vezes tão violentas que as sessões não eram sempre contidas ou elegantes. "Sínodos e Concílios eu os saúdo a distância”, notou secamente Gregório de Nazianzo, "pois sei como eles são problemáticos. Nunca mais me sentarei naquelas reuniões de garças e gansos”. Os Padres, às vezes, defendiam suas causas por meios questionáveis: Cirilo de Alexandria, por exemplo, em sua luta contra Nestório subornou pesadamente a Corte e aterrorizou a cidade de Efeso com uma guarnição privada de monges. Cirilo era temperamental nos seus métodos por causa de seu ardoroso desejo de ver o lado certo triunfar; e se os cristãos foram as vezes amargos, foi porque estavam preocupados com a fé cristã. Talvez a desordem seja melhor do que a apatia. A Ortodoxia reconhece que os Concílios foram realizados por homens imperfeitos, mas ela acredita que estes homens imperfeitos foram guiados pelo Espírito Santo.

 

O bispo bizantino não era apenas uma figura distante que participava dos Concílios; ele agia também em muitos casos como um verdadeiro pai para seu povo, um amigo e protetor em quem as pessoas confiavam quando tinham algum problema. A preocupação com os pobres e oprimidos que João Crisóstomo demonstrava é encontrada também em muitos outros. São João o "Doador de Esmolas”, Patriarca de Alexandria (morto em 619), por exemplo, doou toda a riqueza de sua sé para ajudar aqueles a que ele chamava "meus irmãos, os pobres”. Quando seus próprios recursos acabaram, ele pediu a outros: Ele costumava dizer, um conceito contemporâneo, "que se, sem rancor, alguém tirar a camisa do rico para dar aos pobres, não estaria errado. Aqueles que você chama pobres e pedintes, estes eu declaro meus mestres e ajudantes, pois apenas eles, podem realmente nos ajudar e nos conceder o reino do céu”. A Igreja no Império bizantino não deixava de cuidar de suas obrigações sociais, e uma de suas funções principais era com obras de caridade.

 

O monasticismo teve um papel decisivo na vida religiosa de Bizâncio, da mesma forma que em todos os países ortodoxos. Tem-se dito corretamente que "o melhor modo de penetrar na espiritualidade ortodoxa é fazê-lo por meio do monasticismo. Existe uma grande variedade de formas de vida espiritual a serem encontradas nos limites da ortodoxia, mas o monasticismo continua a ser a mais clássica de todas”. A vida monástica, como instituição definitiva, surgiu primeiro no Egito, no inicio do século IV, e de lá espalhou-se rapidamente pela cristandade. Não é coincidência que o monasticismo tenha se desenvolvido imediatamente após a conversão de Constantino, no tempo que as perseguições cessaram e o cristianismo tornou-se moda. Os monges, com sua austeridade, eram mártires numa época em que o martírio de sangue já não existia mais; formavam o contra-peso do cristianismo estabelecido. As pessoas na sociedade bizantina corriam o perigo de esquecer que Bizâncio era um ícone e um símbolo, não a realidade; corriam o risco de identificar o reino de Deus com um reino terrestre. Os monges com sua saída da sociedade para o deserto preenchiam um ministério profético e escatológico na vida de Igreja. Eles lembravam aos cristãos que o reino de Deus não é deste mundo.

 

O monasticismo tomou três formas principais, todas apareceram no Egito por volta de 350 DC, e todas subsistem até hoje na Igreja Ortodoxa. Existe primeiro os eremitas, homens vivendo uma vida solitária em cabanas ou cavernas, e mesmo em tumbas, troncos de árvores ou topo de colunas. O grande modelo de vida eremita é o próprio pai do monasticismo. Santo Antônio do Egito (251 - 356). Em segundo existe a vida comunitária, onde monges moram juntos sob um regulamento comum e num mosteiro constituído regularmente. Aqui o grande pioneiro foi São Pacomio do Egito (286 - 346), autor de uma regra usado por São Bento no ocidente. Basílio o Grande, cujos escritos ascéticos exerceram influência na formação do monasticismo ocidental, era um forte defensor da vida comunitária. Dando ênfase social ao monasticismo, ele recomendava com insistência que as casas religiosas deviam cuidar dos doentes e dos pobres, mantendo hospitais e orfanatos, e trabalhando diretamente para o benefício da sociedade de um modo geral. Mas em geral o monasticismo oriental tem sido muito menos voltado a um trabalho ativo do que o ocidental. Na Ortodoxia a principal tarefa de um monge é orar e é através disso que ele ajuda os outros. O importante não é tanto o que o monge faz, mas o que ele é. Finalmente existe uma forma de vida monástica intermediária entre estas duas, a vida semi-eremita, um "meio termo" onde ao invés de uma única comunidade altamente organizada existe um grupo disperso em uma pequena colônia, cada colônia abriga de dois a seis irmãos morando juntos e sob a orientação de um mais velho. Os grandes centros de vida semi-eremita no Egito foram Nítria e Setis, que ao final do quarto século haviam produzido muitos monges ilustres - Ammon fundador de Nítria, Macário do Egito e Macário de Alexandria, Evagrio Pôntico e Arsênio o Grande. (Este sistema semi-eremita não é encontrado apenas no oriente, mas também no extremo ocidente, no monasticismo celta).

 

Por causa de seus mosteiros, o Egito no século IV era considerado a Segunda Terra Santa, e viajantes para Jerusalém achavam sua peregrinação incompleta se não incluíam as casas ascéticas do Nilo. Nos séculos V e VI a liderança dos movimentos monásticos transferiu-se para a Palestina, com São Eutímio o Grande (morto em 473) e seu discípulo São Sabbas (morto em 532). O mosteiro fundado por São Sabbas no vale do Jordão representa uma história ininterrupta até os dias de hoje; era a esta comunidade que João Damasceno pertencia. Quase tão antiga é uma outra casa importante com uma história ininterrupta até o presente, o mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai, fundado pelo Imperador Justiniano (reinou de 527-565). Com a Palestina e o Sinai nas mãos dos árabes, a proeminência monástica no Império bizantino passou para o imenso mosteiro de Studium em Constantinopla, originalmente fundado em 463; São Teodoro foi abade lá e fez uma revisão do regulamento da comunidade.

 

Desde o século X o centro mais importante de monasticismo ortodoxo é Athos, uma península rochosa ao Norte da Grécia que se projeta no Mar Egeu e culminando com um pico de 2033 metros de altura. Conhecido como a "Montanha Santa”, Athos abriga vinte mosteiros "regulares" e um grande número de casas menores, assim como eremitérios; toda a península é inteiramente cedida para estabelecimentos monásticos, e nos dias de sua maior expansão diz-se que contava com aproximadamente quarenta mil monges. Apenas um dos vinte mosteiros regulares, produziu, sozinho, 26 Patriarcas e 144 bispos; isto nos dá uma idéia da importância de Athos na história ortodoxa.

 

Não existem "Ordens" no monasticismo ortodoxo. No ocidente um monge pertence à Ordem cartusiana, cistersciense ou qualquer outra Ordem; no oriente ele é apenas um membro de uma grande irmandade que inclui todos os monges e monjas, embora, é claro, ele esteja ligado a um mosteiro particular. Escritores ocidentais, às vezes, referem-se aos monges ortodoxos como "monges Basílios" ou "monges da Ordem Basília”, mas isto não é correto. São Basílio é uma figura importante no monasticismo ortodoxo, mas não fundou Ordem alguma, e embora duas de suas obras sejam conhecidas como Regras Maiores e Regras Menores, não são de forma alguma comparáveis às Regras de São Bento.

 

Uma figura característica no monasticismo ortodoxo é o "ancião" ou "homem velho" (no grego, geron; no russo, staretz, no plural, startsi). O ancião é um monge de discernimento espiritual e sabedoria, a quem os outros - monges ou pessoas de fora - adotam como seu guia e diretor espiritual. Ele é às vezes um padre, mas freqüentemente um monge leigo; ele não recebe ordenação especial ou indicação para o trabalho de presbítero, mas é dirigido a ele pela inspiração direta do Espírito. O ancião vê de um modo prático e concreto qual é o desejo de Deus em relação a cada pessoa que vem consultá-lo: este é o dom especial do ancião ou carisma. O mais antigo e mais celebrado dos startsi monásticos foi Santo Antônio. A primeira parte de sua vida, de dezoito aos cinqüenta e cinco anos, passou-a em retiro e na solidão; então, embora ainda vivendo no deserto, abandonou esta vida de clausura total e começou a receber visitantes. Um grupo de discípulos reuniu-se em torno dele, e além desses discípulos havia um grande círculo de pessoas que vinham freqüentemente de longa distância pedir seus conselhos; tão grande era o volume de visitas que, como escreveu Atanásio o biógrafo de Antônio, tornou-se o médico de todo o Egito. Antônio teve muitos sucessores, e na maioria deles encontra-se o mesmo modelo exterior de eventos - um retiro para retornar. Um monge deve primeiro retirar-se, e em silêncio deve aprender a verdade a seu respeito e a respeito de Deus. Então, após essa longa e rigorosa preparação na solidão, tendo recebido os dons do discernimento necessários a um ancião, ele pode abrir a porta de sua cela e receber o mundo do qual ele anteriormente fugiu.

 

No centro da política cristã de Bizâncio existia a figura do Imperador, que não era um regente comum, mas o representante de Deus na terra. Se Bizâncio era um ícone da Jerusalém celeste, então a monarquia terrestre do imperador era uma imagem ou ícone da monarquia de Deus no céu; na igreja os homens prostravam-se diante do ícone de Cristo, e no palácio diante do ícone vivo de Deus - o Imperador. O palácio labiríntico, o elaborado cerimonial da corte, a sala do trono onde leões mecânicos rugiam e pássaros cantavam: tais coisas foram elaboradas para deixar claro o status de vice-regente de Deus do Imperador. Por tais meios, escreveu o Imperador Constantino VII, o Porfirogênito, "nós representamos o movimento harmonioso de Deus Criador em seu universo, enquanto o poder imperial é preservado em harmonia e ordem”. O Imperador tinha um lugar especial no rito da Igreja: não podia é claro celebrar a eucaristia, mas recebia comunhão como os padres, pregava sermões, em certas festas incensava o altar. As vestimentas que os bispos ortodoxos usam hoje em dia são as vestes usadas outrora pelo Imperador na igreja.

 

A vida em Bizâncio formava um todo uniforme, e não havia uma linha rígida de separação entre religiosos e seculares, entre Igreja e Estado: ambos eram vistos como partes de um mesmo organismo. Mesmo que fosse inevitável o Imperador ter uma participação ativa nos assuntos da Igreja. Ao mesmo tempo não é justo acusar Bizâncio de cesaropapismo, de subordinar a Igreja ao Estado. Embora Igreja e Estado formassem um mesmo organismo, dentro deste organismo único havia dois elementos distintos, o presbiterado (sacerdotium) e o poder imperial (imperium); e mesmo trabalhando em total cooperação, cada um desses elementos tinha sua esfera própria na qual atuava com autonomia. Entre os dois havia "sinfonia" ou "harmonia”, mas nenhum elemento exercia controle absoluto sobre o outro.

 

Esta é a doutrina explicada no grande código da lei bizantina redigida sob Justiniano (veja o sexto apêndice) e repetida em vários outros textos bizantinos. Tome por exemplo as palavras do Imperador João Tzimices: "Reconheço duas autoridades, clero e império; o Criador do mundo confiou ao primeiro a guarda das almas e ao segundo o controle dos corpos dos homens. Não permita que nenhuma autoridade seja atacada e o mundo gozará de prosperidade." Assim era tarefa do Imperador convocar concílios e fazer suas decisões serem cumpridas, mas estava além de seus poderes ditar o conteúdo de tais decretos; cabia aos bispos reunidos nos concílios a decisão do que significava a verdadeira fé. Os bispos foram indicados por Deus para ensinar a fé, enquanto o Imperador era o protetor da Ortodoxia, não seu expoente. Assim era a teoria, assim na maioria das vezes foi praticado. Devemos admitir que houve ocasiões nas quais o Imperador interferia injustificadamente em assuntos eclesiásticos; mas quando surgia uma questão de base, as autoridades da Igreja mostravam rapidamente que tinham vontade própria. O iconoclasmo, por exemplo, foi vigorosamente defendido por toda uma série de Imperadores, e, apesar disso, foi com sucesso rejeitado pela Igreja. Na história bizantina a Igreja e o Estado eram bastante interdependentes, mas nenhum era subordinado ao outro.

 

Existem muitos hoje em dia, não apenas fora, mas também dentro da Ortodoxia, que criticam duramente o Império bizantino e o conceito de sociedade cristã que ele representava. Mas estavam os bizantinos totalmente errados? Eles acreditavam que Cristo, que havia vivido na terra como homem, havia redimido cada aspecto da existência humana, e sustentavam que isto havia tornado possível batizar não apenas indivíduos, mas todo o espírito e organização da sociedade. Assim esforçaram-se para criar uma política inteiramente cristã em seus princípios de governo e em suas vidas diárias. Bizâncio de fato não era nada além de uma tentativa de aceitar e de aplicar todas as implicações da Encarnação. Certamente esta tentativa tinha seus perigos: em particular os bizantinos sempre caíram no erro de identificar o reino terrestre de Bizâncio com o Reino de Deus, o povo grego com o povo de Deus. Certamente Bizâncio estava bastante aquém dos altos ideais em que se colocava, e suas falhas foram freqüentemente lamentáveis e desastrosas. As histórias da crueldade, violência e duplicidade de Bizâncio são bastante conhecidas para serem repetidas aqui. Elas são verdadeiras - mas tão somente parte da verdade. Pois atrás de todas as falhas de Bizâncio pode-se sempre discernir a grande visão na qual os bizantinos se inspiravam: fundar aqui na terra um ícone vivo do governo de Deus no céu.

 

7. O Grande Cisma

 

"Não nos tornamos diferentes.

Ainda somos os mesmos do Século VIII...

Ah, se vocês pudessem concordar

em ser uma outra vez o que já foram,

quando éramos um na fé e na comunhão!"

(Alexis Khomiakov).

 

A desavença entre a Cristandade Oriental e Ocidental.

 

Numa tarde de verão do ano de 1054, quando estava preste a começar um ofício na Igreja de Santa Sophia, em Constantinopla, o Cardeal Humberto e outros dois enviados do Papa entraram na igreja e se encaminharam em direção ao santuário. Não tinham vindo orar. Puseram uma Bula de Excomunhão sobre o altar e, com passos decididos, saíram do santuário. Quando passaram pela porta oeste o Cardeal sacudiu a poeira de seus pés, enquanto proferia estas palavras: "Que Deus veja e julgue”. Um diácono correu atrás dele desesperado e lhe implorou que levasse consigo a Bula. O Cardeal se recusou a fazê-lo e a Bula foi jogada na rua.

 

Convencionalmente considera-se que este incidente marcou o inicio do grande cisma entre o oriente ortodoxo e o ocidente romano. O cisma, no entanto, como reconhecem os historiadores de hoje, não é de fato um acontecimento cujo começo possa ser estabelecido numa data exata.

 

Foi algo que aconteceu gradativamente, como resultado de um processo longo e complicado, que começou muito antes do século XI e que só terminou um pouco depois daquela época. Influências diversas contribuíram para tal. O cisma condicionou-se a fatores culturais, políticos, e econômicos. No entanto sua causa fundamental não foi secular, mas sim teológica. Em última analise, foi por causa de assuntos doutrinais que o oriente e o ocidente se desentenderam - dois deles em particular: a primazia do Papa e o filioque. Antes de considerarmos mais de perto estas duas diferenças principais, ou verdadeiro curso que o cisma tomou, devemos dizer algo sobre o pano de fundo em que ele se desenrolou. Bem antes de haver um cisma claro e formal entre o oriente e o ocidente os dois lados haviam se tornado estranhos um ao outro. Ao tentarmos compreender porque a unidade da Cristandade foi rompida, devemos começar por este crescente afastamento.

 

Quando Paulo e outros apóstolos viajavam pelo mundo mediterrâneo, eles se deslocavam através de uma forte unidade política e cultural, o Império Romano. Este império era formado por muitos grupos étnicos diferentes, que freqüentemente tinham línguas e dialetos próprios. Todos eles, no entanto, eram governados pelo mesmo imperador. Havia uma extensa civilização grego-romana que era compartilhada pelas pessoas cultas em todas as regiões do império. Entendia-se ou o grego ou o latim em quase todo o império e muitos sabiam falar ambas as línguas. Tais fatos contribuíram muito para a Igreja primitiva em seu trabalho missionário.

 

Porém, nos séculos seguintes, a unidade do mundo mediterrâneo desapareceu gradativamente. A unidade política foi a primeira a desaparecer. A partir do final do século III o império, ainda que teoricamente uno, estava geralmente dividido em duas partes, o ocidente e o oriente. Constantino levou mais longe este processo de separação ao fundar uma segunda capital no oriente, ao lado da velha Roma na Itália. Depois vieram as invasões dos bárbaros no começo do século V. Com exceção da Itália, que em sua maior parte continuou a fazer parte do império por mais algum tempo, o ocidente foi dividido entre os chefes bárbaros. Os bizantinos jamais se esqueceram dos ideais de Roma sob os governos de Augusto e Trajano e ainda consideravam seu império universal, o que se dava apenas teoricamente. Justiniano foi, porém, o último imperador que se esforçou seriamente em acabar com a distância entre a teoria e os fatos. Suas conquistas no ocidente foram logo abandonadas. A unidade política entre o oriente grego e o ocidente romano foi destruída pelas invasões dos bárbaros e jamais foi plenamente restabelecida.

 

A separação foi levada a um estágio mais sério pela ascensão do Islã. O mediterrâneo, que outrora havia sido chamado de Mare Nostrum pelos romanos, passava agora, em grande parte, ao controle dos árabes. Os contatos culturais e econômicos entre o oeste e o leste do mediterrâneo nunca cessaram completamente, mas se tornaram bem mais difíceis.

 

Desligado de Bizâncio, o ocidente tratou de estabelecer o seu próprio Império "Romano." No dia de natal do ano de 800, o Papa coroou Carlos Magno, rei dos francos, imperador. Carlos Magno procurou, em vão, o reconhecimento do imperador de Bizâncio. Os bizantinos, que ainda acreditavam no princípio da unidade do império, viam Carlos Magno como um intruso e sua coroação feita pelo Papa, como um ato cismático dentro do império. A criação de um Império romano cristão no ocidente, ao invés de unir a Europa, serviu tão somente para separar ainda mais o oriente e o ocidente.

 

A unidade cultural ainda persistiu, mas de uma maneira bem mais atenuada. Tanto no oriente quanto no ocidente os homens cultos ainda viviam dentro da tradição clássica que a Igreja havia assumido e adotado. Com o passar do tempo, porém, começaram a interpretar esta tradição de maneira cada vez mais divergente. A situação se tornou ainda mais difícil por questões relacionadas a língua. Havia chegado ao fim a época em que as pessoas cultas eram bilíngües. No ano de 450 havia poucos na Europa que soubessem ler grego e depois de 600, embora Bizâncio ainda se intitulasse Império Romano, era raro um bizantino que falasse latim, a língua dos romanos. Photius, o maior erudito de Constantinopla no século IX não sabia ler latim e, em 864 um imperador "romano" de Bizâncio, Miguel III, chegou a chamar a língua na qual Virgílio escreveu, de "uma língua bárbara”. Se os gregos queriam ler obras em latim ou os romanos em grego, eles só tinham acesso a traduções e geralmente não se preocupavam em ler nem mesmo estas. Psellus, um eminente erudito grego do século XI tinha uma noção tão precária da literatura latina que confundia César com Cícero. Isto porque não se inspiravam mais na mesma fonte nem liam os mesmos livros. O oriente grego e o ocidente romano se distanciavam cada vez mais.

 

Foi um precedente funesto, porém significativo, que a renascença cultural da corte de Carlos Magno tinha sido marcada desde o início por um forte preconceito contra a cultura grega. A hostilidade e a provocação da parte do império romano do ocidente em relação a Constantinopla se estendia para além do campo político atingindo o campo cultural. Os homens cultos da corte de Carlos Magno não tencionavam imitar Bizâncio, mas procuravam criar uma nova civilização cristã que fosse sua própria. Na Europa do século IV havia existido uma única civilização cristã. No século XIII havia duas. Talvez tenha sido no reinado de Carlos Magno que o cisma entre estas duas civilizações tenha primeiro se tornado claro.

 

De sua parte, os bizantinos ficaram fechados no seu próprio mundo e pouco fizeram para se aproximar do ocidente. Ao contrário do que acontecia no século IX e em séculos posteriores eles não levavam o conhecimento ocidental a sério como ele merecia. Eles simplesmente rejeitavam todos os "francos" como bárbaros.

 

Estes fatores culturais e políticos com certeza afetavam a vida da Igreja e tornavam mais difícil manter a unidade religiosa. O afastamento cultural e político podem facilmente levar a contendas de caráter eclesiástico, como podemos constatar no caso de Carlos Magno. Não tendo sido reconhecido na esfera política pelo imperador bizantino, logo retaliou com uma acusação de heresia contra a Igreja bizantina. Denunciou os gregos por não usarem o filioque no Credo (falaremos mais sobre isto em seguida) e recusou-se a aceitar as decisões do 7º Concílio Ecumênico; é verdade que Carlos Magno só soube destas decisões através de uma tradução mal feita que distorcia seriamente seu sentido verdadeiro. De qualquer modo, ele parece ter sido um semi-iconoclasta quanto às suas posturas.

 

A situação política distinta no leste e no oeste fez com que a Igreja assumisse formas externas diferentes, de modo que gradativamente passou-se a pensar na hierarquia da Igreja de maneira conflitante. Desde o começo tinha havido uma ênfase quanto a isto no oriente e no ocidente. No oriente havia muitas igrejas cuja base remontava aos apóstolos; havia um forte sentido de igualdade entre todos os bispos quanto a natureza conciliar e colegial da Igreja. O oriente reconhecia o Papa primeiro entre iguais. No ocidente, por outro lado, havia só uma grande sé que reivindicava para si a sucessão apostólica - Roma - donde passou a ser vista como a sé apostólica. O ocidente, mesmo aceitando as decisões dos Concílios Ecumênicos, não tinha um papel muito ativo nos mesmos. A Igreja era vista mais como uma monarquia - a do Papa - do que como um colegiado.

 

Esta diferença inicial de pontos de vista se tornou mais séria devido a acontecimentos políticos que se seguiram. Como era de se esperar, as invasões dos bárbaros e a conseqüente queda do império no ocidente serviram para tornar mais forte a estrutura autocrática da Igreja ocidental. No oriente havia um chefe secular muito poderoso - o imperador - para manter a ordem e fazer cumprir a lei. No ocidente, depois do advento dos bárbaros, havia um grande número de chefes guerreiros, todos eles, de um certo modo, usurpadores. Na maioria das vezes era o Papado sozinho que podia desempenhar o papel de centro de união, como um elemento de continuidade e estabilidade na vida política e espiritual da Europa ocidental. Por força das circunstâncias, o Papa assumiu um papel que os Patriarcas Gregos não foram chamados a fazer. Tornou-se um autocrata, um monarca absolutista, que se colocou acima da Igreja, expedindo ordens de um modo que poucos ou nenhum bispo do oriente jamais havia feito, não só quanto aos subordinados da Igreja, mas também quanto as autoridades seculares. A Igreja no ocidente tornou-se centralizada a um ponto que era desconhecido em qualquer dos patriarcados no oriente (com exceção possivelmente no Egito). Monarquia no ocidente; no oriente um colegiado.

 

Não foi este também o único efeito que as invasões dos bárbaros tiveram na vida da Igreja. Em Bizâncio havia muitos leigos cultos que tinham um grande interesse em teologia. O teólogo leigo sempre foi uma figura aceita na Ortodoxia; alguns dos patriarcas bizantinos mais cultos - Photius, por exemplo - haviam sido leigos antes de serem escolhidos para o Patriarcado. No oeste, no entanto, a única educação efetiva que sobreviveu a "Idade das trevas" era a que a Igreja dava ao clero. A teologia tornou-se privilégio dos padres, uma vez que a maior parte dos leigos era analfabeta, e não era capaz de entender as tecnicidades de uma discussão teológica. A Ortodoxia, apesar de confiar ao episcopado a tarefa especial de educar, nunca conheceu uma divisão tão grande entre o clero e os leigos, como a que se deu na Idade Média no ocidente.

 

As relações entre os cristãos do leste e do oeste se tornaram ainda mais difíceis pela ausência de uma língua comum. Como os dois lados já não conseguiam se comunicar entre si com facilidade, ou ler o que o outro escrevera, apareceram freqüentes mal-entendidos em termos de teologia. Estes mal-entendidos pioravam ainda mais por causa das traduções mal feitas as quais se teme terem sido feitas deliberada e maliciosamente.

 

O leste e o oeste se tornavam estranhos um ao outro, o que era algo que provavelmente afetaria ambos os lados. Na Igreja primitiva tinha havido unidade na fé, mas uma diversidade de escolas de teologia. Desde o início tanto o leste quanto o oeste haviam enfocado o mistério cristão cada um a sua maneira. O enfoque do ocidente era mais prático; o do leste mais especulativo. O pensamento romano foi influenciado por conceitos Jurídicos, pelos conceitos da lei romana, enquanto que os gregos viam a teologia, no contexto da adoração à luz da Liturgia Sagrada. Quando pensavam a Trindade os romanos o faziam pela unidade de Deus Pai, os gregos pela triunidade das Pessoas; quando refletiam sobre a crucificação, os romanos pensavam primordialmente no Cristo - vítima, os gregos, no Cristo - vencedor. Os romanos falavam mais da redenção; os gregos da deificação e assim por diante. Como aconteceu com as escolas de Antioquia e Alexandria no leste estes dois enfoques distintos não eram contraditórios em si; cada um serviu, como complemento do outro, e tinham seu próprio lugar na plenitude da tradição católica. Porém, agora que os dois lados estavam se tornando estranhos um ao outro - sem unidade política e com pouca unidade cultural, sem uma língua comum - havia o perigo de que cada lado seguisse seus pontos de vista isolados e que chegasse a extremos, esquecendo-se do valor que há em pontos de vista opostos.

 

Falamos dos diferentes enfoques dados à doutrina no Leste e no Oeste. Havia dois pontos doutrinais em relação aos quais os dois lados não se completavam mais, mas entravam em conflito direto - a primazia e a infalibilidade do Papa e o filioque. Dois fatores mencionados em parágrafos anteriores eram suficientes por si próprios para causar uma séria tensão quanto à unidade da cristandade. Apesar de tudo, a unidade da Igreja poderia ainda ter sido preservada se não tivesse havido duas outras questões difíceis. Devemos nos voltar para elas agora. Só na metade do século IX que o desentendimento em toda sua extensão veio à tona, mas as divergências entre os dois lados podem ser datadas bem mais cedo.

 

Já tivemos oportunidade de mencionar o Papado quando falamos das situações políticas distintas, no Oriente e no Ocidente; vimos como a estrutura centralizada e monárquica da Igreja do ocidente foi reforçada pelas invasões dos bárbaros. Porém, contanto que o Papa reivindicasse poder absoluto só no ocidente, Bizâncio não fazia qualquer objeção. Os bizantinos não se incomodavam que a Igreja do Ocidente fosse centralizada, contanto que o Papado não interferisse no leste. O Papa, no entanto, achava que sua jurisdição se estendia do Ocidente ao Oriente. E logo que tentasse impor seu poder dentro dos Patriarcados do Oriente, problemas haveriam de surgir. Os ortodoxos deram ao Papa uma primazia de honra, mas não a primazia universal que ele achava que lhe era devida. O Papa considerava a infalibilidade uma prerrogativa sua; os ortodoxos diziam que em questões relacionadas a fé a decisão final cabia não ao Papa sozinho mas a um concilio representando todos os bispos da Igreja. Aqui temos duas concepções diferentes da organização externa da Igreja.

 

Atitude ortodoxa quanto ao Papado é expressa admiravelmente por um escritor, do século XII, Nicetas, Arcebispo de Nicomédia:

 

"Amado irmão, nós não negamos à Igreja de Roma a primazia entre os cinco patriarcados irmãos; e reconhecemos seu direito ao mais honorável lugar num concílio ecumênico. Mas ela se separou de nós por seus próprios atos, quando, por orgulho, assumiu uma monarquia que não faz parte de seu ofício... Como haveremos de aceitar decretos seus que foram publicados sem sermos consultados ou mesmo sem termos conhecimento deles? Se o Pontífice romano, sentado no trono altivo de sua glória, deseja nos atacar e, por assim dizer, das alturas ”despejar" mandatos sobre nós, se deseja nos julgar ou nos governar e às nossas Igrejas, não se aconselhando conosco, mas por seu prazer arbitrário, que tipo de irmandade ou mesmo que tipo de parentesco pode haver? Seríamos os escravos e não os filhos de tal Igreja, e a Sé de Roma, não a mãe piedosa de seus filhos, mas uma rígida e imperiosa senhora de escravos."

 

Era assim que se sentia um ortodoxo no século XII quando toda a questão veio à tona. Em séculos anteriores a atitude dos orientais em relação ao Papado foi basicamente a mesma, embora tivesse sido ainda aguçada por controvérsias. Até o ano de 350 Roma e o Oriente evitaram um conflito aberto quanto a primazia e a infalibilidade do Papa. Mas a divergência do ponto de vista não era menos séria por estar parcialmente escondida.

 

A segunda grande dificuldade era o filioque . A disputa envolvia os termos sobre o Espírito Santo no Credo de Nicéia/Constantinopla. Originalmente o credo dizia "Eu creio no Espírito Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória." Esta, que é a forma original, é recitada sem modificações no Oriente até hoje. Mas o Ocidente acrescentou uma frase extra "e do Filho" (em latim "filioque") tanto que seu credo agora diz "que procede do Pai e do filho" Não é certo quando e onde este acréscimo foi feito primeiro, mas parece que se originou na Espanha, como uma defesa contra o arianismo. De qualquer modo a igreja espanhola inseriu o filioque no credo no terceiro Concílio de Toledo (589), se não antes. Da Espanha o filioque espalhou-se para a França, e dai para a Alemanha, onde foi bem recebido por Carlos Magno e adotado pelo concílio semi-iconoclasta de Frankfurth (794). Teriam sido escritores na corte de Carlos Magno que primeiro fizeram com que o filioque passasse a ser um assunto controvertido, acusando os bizantinos de heréticos por recitarem o credo em sua forma original. Mas Roma, com seu conservadorismo típico, continuou a usar o credo sem o filioque até o começo do século XI. Em 808 o Papa Leão III escreve numa carta para Carlos Magno, que embora ele mesmo achasse que o filioque procedia em termos doutrinais, ele considerava errado interferir nos termos do credo. Deliberadamente mandou inscrever o credo em placas de prata - sem o filioque - e as colocou na igreja de São Pedro. Até segunda ordem, Roma agiria como mediadora entre a Alemanha e Bizâncio.

 

Só depois de 850 que os bizantinos passaram a prestar atenção ao filioque. Quando o fizeram sua reação foi muito crítica. A ortodoxia não concordou (e ainda não concorda) com este acréscimo no credo, por dois motivos. Primeiro, os concílios ecumênicos proibiram a introdução de quaisquer mudanças no credo; e no caso de qualquer acréscimo só um outro concílio ecumênico e ninguém mais tinha competência para fazê-lo. O Credo é propriedade de toda a Igreja, e uma parte dela não tem o direito de interferir nele. O Ocidente, ao alterar arbitrariamente o credo, sem consultar o oriente é culpado contra a unidade da Igreja. Em segundo lugar, os ortodoxos acham o filioque teologicamente errado. Dizem que o Espírito procede somente do Pai e consideram uma heresia dizer que Ele também procede do Filho. Pode parecer a muitos que esta questão é tão obscura que chega a ser sem importância. Mas os ortodoxos diriam que uma vez que a doutrina sobre a Trindade é o cerne da fé cristã, uma pequena mudança de ênfase na teologia trinitária tem conseqüências enormes em muitos outros campos. O filioque não só destrói o equilíbrio entre as três pessoas da Trindade, mas também leva a uma falsa compreensão da ação do Espírito no mundo, estimulando a existência de uma doutrina falsa sobre a Igreja. (Dei aqui uma visão regular da ortodoxia sobre o filioque; Deve-se notar, no entanto, que certos teólogos ortodoxos consideram o filioque apenas um acréscimo não autorizado ao Credo, não necessariamente herético por si só.).

 

Além destas duas questões principais, as reivindicações do Papa e o filioque havia outros assuntos menos importantes quanto ao culto e à disciplina na Igreja que causaram problema entre o Oeste e o Leste - os ortodoxos admitiam que o casamento para membros do clero, os romanos insistiam no celibato clerical; os dois lados tinham normas diferentes quanto ao jejum; os ortodoxos usavam pão fermentado na eucaristia, os romanos pão não fermentado ou "ázimo".

 

Por volta de 850 o leste e o oeste ainda se encontravam em total comunhão um com o outro e ainda formavam uma só Igreja. A divisão cultural e política haviam se juntado para causar um afastamento crescente, mas não havia um cisma claro. Os dois lados tinham uma concepção diferente da autoridade do Papa e confessavam o Credo de forma diferente, mas estas questões não haviam ainda sido trazidas à tona claramente.

 

Em 1190 Teodoro Balsamon, Patriarca de Antioquia e grande autoridade em direito canônico, tinha uma visão diferente dessas questões:

 

Há muitos anos (não diz quanto exatamente) a Igreja do Ocidente não comunga com os outros quatro patriarcados e tornou-se uma estranha para os ortodoxos. Portanto, nenhum católico romano deve receber a comunhão a não ser que primeiro declare que renega a doutrina e os costumes que o separam de nós e que se sujeitará aos cânones da Igreja, unido à Ortodoxia.

 

Aos olhos de Balsamon, a comunhão entre as igrejas havia sido afetada; havia um cisma claro entre o oriente e o ocidente. Os dois não formavam mais uma Igreja visível.

 

Nesta transição entre o período do afastamento entre o Oriente e o Ocidente até o cisma propriamente dito quatro incidentes tem importância especial; a disputa entre Photius e Nicolau I (geralmente conhecida como o cisma de Photius no ocidente; o oriente preferiria chamá-lo do cisma de Nicolau); a questão dos dípticos em 1009; a tentativa de reconciliação em 1053 e suas conseqüências desastrosas; e as Cruzadas.

 

8. Da Desavença ao Cisma: 858-1204

 

Em 858, quinze anos depois do triunfo dos ícones com Theodora, o novo Patriarca de Constantinopla foi designado: Photius, conhecido na Igreja Ortodoxa como São Photius, o Grande, "o mais distinguido pensador, o mais conspícuo político, e o mais hábil diplomata que ocupou o cargo de Patriarca de Constantinopla" (G. Ostrogorsky, in History of the Byzantine State. p. 199). Logo depois de sua entronização envolveu-se numa disputa com o Papa Nicolau I (858-67). O Patriarca anterior, Santo Ignácio, fora exilado pelo Imperador e teve que renunciar sob pressão. Os partidários de Ignácio, recusando a validade desta renúncia, consideraram Photius um usurpador. Quando Photius enviou uma carta ao Papa anunciando sua ascensão ao trono, Nicolau decidiu que antes de reconhecê-lo ele investigaria melhor a querela entre o novo Patriarca e os seguidores de Ignácio. Em 861, ele enviou, para tanto, uma nunciatura a Constantinopla.

 

Photius não desejava de modo algum iniciar uma disputa com o Papado. Tratou os núncios com grave deferência, convidando-os a presidir num Concílio em Constantinopla, o qual deveria dirimir as dúvidas entre ele e Ignácio. Os núncios concordaram, e juntamente com os demais reunidos naquele Concílio, declararam que Photius era o legítimo Patriarca. Porém, quando retornaram a Roma, Nicolau declarou que eles tinham excedido seus poderes, e revogou a decisão deles. Então, ele próprio prosseguiu com o caso a partir de Roma: um Concílio reunido sob sua presidência em 863 reconheceu Ignácio o Patriarca, e condenou Photius à deposição de toda a dignidade clerical. Os bizantinos não tomaram conhecimento desta condenação, e não deram qualquer resposta às cartas papais. Assim, uma ruptura existia abertamente entre as Igrejas de Roma e Constantinopla.

 

A disputa envolvia claramente a primazia papal. Nicolau foi um grande reformador, com uma idéia exaltada sobre as prerrogativas de sua cátedra, e já havia feito muito para estabelecer um poder absoluto sobre todos os Bispos do Ocidente. Acreditava que esse poder se estenderia também sobre o Oriente, conforme escreveu em 865: o Papa é revestido de autoridade "sobre toda a Terra, isto é, sobre toda a Igreja”. Isto era justamente o que os bizantinos não estavam preparados para conceder. Confrontado com a disputa entre Ignácio e Photius, Nicolau pensou ver aí uma oportunidade de ouro para reforçar sua pretensão à jurisdição universal: ele faria ambas as facções submeterem-se ao seu arbítrio. Mas, percebeu que Photius submetera-se voluntariamente ao Inquérito feito pelos núncios, não servindo seu ato como um reconhecimento da primazia papal. Os bizantinos, por sua vez, admitiam apelos a Roma, mas apenas sob as condições especificadas no Cânone III do Concílio de Sardica (343). Este Cânone afirma que um Bispo, diante de uma sentença de condenação, pode apelar para Roma, e o Papa, se lhe achar ganho de causa, pode ordenar uma revisão do processo; esta, entretanto, não deve ser conduzida pelo próprio Papa de Roma, mas pelos Bispos das províncias adjacentes àquela do Bispo condenado. Nicolau, assim pensavam os bizantinos, ao depor seus delegados e ordenar um julgamento em Roma, estava indo muito além do prescrito nesse Cânone. Consideraram seu comportamento indefensável e uma interferência anti-canônica nas questões de outro Patriarcado.

 

Logo, não só a primazia papal, mas também o filioque, passou a ser envolvido na disputa. Bizâncio e o Ocidente (principalmente os germânicos) estavam promovendo grandes ofensivas missionárias entre os eslavos. As duas linhas de avanço missionário, a do Ocidente e a do Oriente, logo convergiram; e quando missionários gregos e germânicos encontraram-se trabalhando na mesma região, foi difícil evitar um conflito, já que as duas missões pregavam princípios largamente díspares. O choque naturalmente trouxe à tona a questão do filioque, empregado pelos germânicos no Credo, mas não pelos gregos. O foco principal dos problemas foi a Bulgária, um país que tanto Roma quanto Constantinopla estavam ansiosos por anexar às suas esferas de jurisdição. Inicialmente o Khan Boris inclinou-se ao batismo dos missionários germânicos: ameaçado, entretanto, por uma invasão bizantina, mudou sua política e por volta de 865 aceitou o Batismo do clero grego. Mas Boris queria que a igreja da Bulgária se tornasse independente, e quando Constantinopla recusou-se a conceder- lhe autonomia, ele voltou-se para o Ocidente em busca de melhores termos. Com passe-livre na Bulgária, os missionários latinos prontamente detonaram um vasto ataque aos gregos, destacando os pontos em que a prática bizantina diferia da deles: o casamento do clero, as regras dos jejuns e, sobretudo, o filioque. Em Roma, propriamente, este ainda não estava em uso, mas Nicolau deu apoio total aos germânicos quando insistiram na sua inserção no Credo na Bulgária. O papado, que em 808 mediara entre os germânicos e os gregos, já não era neutro.

 

Photius ficou naturalmente abalado com a extensão da influência germânica nos Bálcãs, Justo às portas do Império Bizantino; mas ficou muito mais alarmado com a questão do filioque, que se lhe apresentava forçosamente. Em 867, pôs-se em campo. Escreveu uma Encíclica aos outros Patriarcas do Oriente denunciando o filioque por completo e inculpando aqueles que o usavam de heresia. Photius tem sido freqüentemente culpado por ter escrito esta carta, como, por exemplo, pelo historiador católico romano Francis Dvornik, que considerou o ato um "ataque fútil (...) com conseqüências fatais”. Mas, devemos lembrar que Photius não foi o primeiro a fazer do filioque um ponto de controvérsia: setenta anos antes, Carlos Magno e seus doutores deram início à controvérsia; o Ocidente atacou primeiro, não o Oriente. Photius terminou sua carta com a convocação de um Concílio em Constantinopla, o qual declarou o Papa Nicolau excomungado, nomeando-o "um herético que dizima as vinhas do Senhor”.

 

Neste ponto crítico da disputa, toda a situação mudou subitamente. Naquele mesmo ano de 867, Photius foi deposto do Patriarcado pelo Imperador. Ignácio tornou-se Patriarca mais uma vez e a comunhão com Roma foi restaurada. Em 869-70, outro Concílio teve lugar em Constantinopla, conhecido como Concílio Anti-Photico, que condenou e anatematizou Photius, revertendo a decisão de 867. Este Concílio, reconhecido no Ocidente como o VIII Concílio Ecumênico, abriu com o inexpressivo número de doze Bispos, mas nas sessões subseqüentes este número tinha subido para 103.

 

Mas ainda haveriam de acontecer mudanças. O Concílio de 869-70 requisitou ao Imperador uma solução para a Igreja da Bulgária, e não foi surpresa ele tê-la inscrito no Patriarcado de Constantinopla. Compreendendo que Roma lhe permitiria menos independência que Bizâncio, Boris acatou essa decisão. A partir de 870 os germânicos foram expulsos e não mais se ouviu o filioque no Credo da Bulgária. Mas, isso não era tudo. Em Constantinopla, Ignácio e Photius se reconciliaram, e quando Ignácio morreu em 877, Photius sucedeu-o novamente como Patriarca. Era 879 ainda um outro Concílio reuniu-se em Constantinopla, com a participação de 383 Bispos - um contraste notável com o magro total do Concílio Anti-Photico de dez anos antes. O Concílio de 869 foi anatematizado e todas as condenações a Photius foram retiradas; essas decisões foram aceitas sem protestos em Roma. De modo que Photius saiu-se vitorioso, reconhecido por Roma e senhor eclesial da Bulgária. O Papa de então, João VIII (871-882), compreendera o quão seriamente a política de Nicolau havia comprometido a unidade da Cristandade.

 

Photius, sempre honrado no Oriente como um santo, um líder da Igreja, e um teólogo, no passado foi olhado pelo Ocidente com menos entusiasmo, como autor de um cisma e nada mais. Suas boas qualidades agora são mais amplamente apreciadas. "Se estou certo em minhas conclusões”, assim conclui o Dr. Dvornik em seu monumental estudo, "nós poderemos reconhecer em Photius um grande homem de Igreja, um humanista erudito, e um cristão genuíno, generoso o bastante para perdoar seus inimigos, e para dar os primeiros passos em direção à reconciliação." (O Cisma Phótico. p. 432). Na recente reapreciação histórica do cisma, nunca a mudança do veredicto dos escritores sofreu tal mudança como no caso de São Photius.

 

No começo do sec. XI houve novos problemas em torno do filioque. O papado afinal adotava a sua inclusão: na coroação do Imperador Henrique II em Roma, em 1014, o Credo foi cantado nessa forma interpolada. Cinco anos mais cedo, em 1009, o recém-eleito Papa Sérgio IV enviara uma carta a Constantinopla a qual continha o filioque, embora disto não se tenha certeza. Qualquer que seja a razão, o Patriarca de Constantinopla, também chamado Sérgio, não incluiu o nome do novo Papa nos Dípticos: listas, mantidas por cada Patriarca, nas quais inclui os nomes dos outros Patriarcas, vivos e defuntos, os quais reconhece como ortodoxos. Os Dípticos são um nítido sinal da unidade da Igreja, e omitir-se deles deliberadamente o nome de um homem é equivalente a declarar que este não está em comunhão consigo. Depois de 1009 o nome do Papa não mais figurou nos Dípticos de Constantinopla; tecnicamente, por isso, as igrejas de Roma e Constantinopla não estavam em comunhão desde essa data. Mas seria imprudente levar esta tecnicidade muito longe. Os dípticos freqüentemente são incompletos, de tal sorte que não podem se constituir num guia infalível das relações eclesiais.

 

Enquanto o século onze prosseguia, novos fatores levaram as relações entre o Papado e os Patriarcas Orientais a uma crise maior.O século precedente fora um período de grave instabilidade e confusão para a Sé de Roma, um século que o Cardeal Baronius, com justiça, chamou de idade de ferro e conduziu à história do papado. Mas Roma agora reformava-se, e sob o governo de homens como Hildebrando (Papa Gregório VII) ganhou uma posição de poder no Ocidente como jamais atingira. O Papado restaurado naturalmente reavivou a pretensão à primazia universal de Nicolau. Os bizantinos, por seu lado, haviam se acostumado a tratar com um papado que fora durante a maior parte do tempo fraco e desorganizado, e assim acharam difícil adaptarem-se à nova situação. Os problemas ficaram piores devido a fatores políticos, tais como a agressão militar dos Normandos na Bizâncio Italiana, e as agressões comerciais das cidades marinhas italianas no Mediterrâneo Oriental durante os séculos XI e XII.

 

Em 1054 houve uma disputa séria. Os Normandos vinham forçando os gregos da Itália bizantina a se porem de acordo com os costumes latinos; o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerularius, em contrapartida, pedia que as igrejas latinas de Constantinopla adotassem as práticas gregas, e em 1052, quando essas recusaram, ele as fechou. Dentre as práticas latinas contra a que Miguel mais se opunha era a do uso dos ázimos, ou pão não-fermentado, na Eucaristia, um tema que não havia aparecido na disputa no sec. IX. Em 1053, porém, Cerularius assumiu uma postura algo mais reconciliatória e escreveu ao Papa Leão X oferecendo-se para restituir o nome dele aos Dípticos. Em resposta, e para solver as questões entre práticas gregas e latinas, Leão enviou, em 1054, três núncios a Constantinopla, sendo o chefe deles Humberto, Bispo de Silva Cândida. A escolha do Cardeal Humberto foi infeliz, pois tanto quanto Cerularius ele era homem de temperamento rijo e intransigente; o encontro dos dois não promoveria boa vontade entre os cristãos. Os núncios, quando compareceram diante de Cerularius, não deram uma impressão favorável a Cerularius. Lançando-lhe uma carta do Papa, retiraram-se sem as costumeiras saudações; a carta mesma, embora assinada por Leão, tinha sido, de fato, rascunhada, por Humberto, e era francamente hostil. Depois disso, o Patriarca recusou-se a ter outros encontros com os núncios. Por fim, Humberto perdeu a paciência e lançou uma Bula de Excomunhão contra Cerularius no altar da Igreja de Santa Sofia: dentre outras acusações mal fundadas desse documento, Humberto acusava os gregos de omitirem o filioque do Credo! Humberto deixou Constantinopla prontamente sem maiores explicações, e de volta à Itália, pintou os acontecimentos como uma grande vitória para Roma. Cerularius e seu sínodo retaliaram anatematizando Humberto. A tentativa de reconciliação deixou as coisas piores do que antes.

 

Mas mesmo depois de 1054 relações amistosas entre oriente e ocidente continuaram. As duas partes da Cristandade não estavam conscientes do profundo golfo que as separava, e homens de ambos os lados nutriam esperanças de que os desentendimentos se esclareceriam sem muitas dificuldades. A disputa permaneceu algo de que os Cristãos comuns, no oriente e no ocidente, não tinham consciência. Foram as Cruzadas que tornaram o cisma definitivo: elas introduziram um novo espírito de ódio e acrimônia, envolvendo até o povo na discórdia.

 

Do ponto de vista militar, no entanto, as Cruzadas começaram com grande impacto. Antioquia foi capturada dos turcos em 1098, Jerusalém em 1099: a primeira Cruzada foi um sucesso brilhante ainda que sanguinário.Tanto em Antioquia como em Jerusalém, os Cruzados começaram por empossar Patriarcas latinos. Em Jerusalém, isto era razoável, já que a cátedra estava vaga na época; e embora, nos anos que se seguiram, tenha existido uma sucessão de Patriarcas gregos em Jerusalém, vivendo exilados em Chipre, na Palestina mesma toda a população, grega e latina, de início aceitou o Patriarca Latino como cabeça. Um peregrino russo em Jerusalém em 1106-7 Abade Daniel Tchernigov, encontrou gregos e latinos rezando juntos em harmonia nos Lugares Sagrados, apesar dele ter notado com satisfação que na cerimônia do Santo Fogo as lâmpadas gregas foram acesas miraculosamente enquanto que as latinas tiveram que ser acesas nas gregas. Mas em Antioquia os Cruzados encontraram um Patriarca grego de fato residente: logo depois, é verdade, ele retirou-se para Constantinopla, mas a população grega local não estava propensa a aceitar o Patriarca latino que os Cruzados colocaram no seu lugar. Assim, desde 1100, houve em Antioquia um cisma local. Depois de 1187, quando Saladim capturou Jerusalém, a situação na Terra Santa deteriorou: dois rivais, da própria Palestina, agora dividiam a população cristã, um Patriarca latino em Agra, e outro grego em Jerusalém. Roma estava muito longe, e se Roma e Constantinopla contendiam, que diferença isso podia fazer na prática de um cristão comum da Síria ou da Palestina? Mas, quando dois Bispos rivais reclamavam o mesmo trono e duas congregações hostis existiam na mesma cidade, o cisma tornava-se uma realidade imediata na qual fiéis comuns eram diretamente envolvidos.

 

Mas o pior estava por vir em 1204, com a tomada de Constantinopla na Quarta Cruzada. Os cruzados estavam originalmente com destino ao Egito, mas foram persuadidos por Alexius, filho de Isaac Angelus, o Imperador deposto de Bizâncio, a voltarem-se contra Constantinopla, a fim de restaurá-lo, e a seu pai, no trono. Esta intervenção ocidental na política bizantina não foi muito feliz, porque os cruzados, perderam a paciência e saquearam a cidade. "Mesmo os sarracenos são misericordiosos e gentis”, protestou Nicetas Choniates, "comparados a esses homens que levam a cruz de Cristo em seus ombros." O que chocou os gregos mais do que qualquer outra coisa, foi a devassidão e o sacrilégio sistemático dos cruzados. Como podiam aqueles homens dedicados aos serviços de Deus, tratar as coisas de Deus daquela maneira? Ao verem os cruzados quebrarem em pedaços o altar e a iconostase da Igreja de Santa Sofia e colocar prostitutas no trono do Patriarca, os bizantinos devem ter sentido que aqueles que faziam essas coisas não eram cristãos, não no mesmo sentido que eles.

 

9. Constantinopolitana Civitas Diu Profana

 

"Cidade de Constantinopla, de há muito profana."

 

Assim cantavam os cruzados franceses de Angers, voltando para casa, levando as relíquias que haviam roubado. Podemos nos surpreender que os gregos depois de 1204 também olhassem os latinos como profanos? Os cristãos ocidentais ainda não compreendem quão profunda é a repulsa e quão duradouro o horror com que os ortodoxos consideram atos como o saque de Constantinopla pelos cruzados.

 

"Os cruzados não trouxeram a paz, mas a espada; e esta era para ferir a Cristandade" (S.Runciman, The Eastern Schism, p.101). As desavenças doutrinais de há muito eram agora reforçadas do lado grego por um ódio nacional intenso, por um ressentimento e uma indignação contra a agressão e o sacrilégio ocidentais. Depois de 1204 não pode haver dúvidas de que o Oriente e o Ocidente cristão estavam separados.

 

Ao recontar a história do cisma, historiadores recentes enfatizam com razão a importância dos fatores "não-teológicos”. Mas temas dogmáticos vitais também estavam envolvidos. Mesmo quando é feita total concessão a todas as dificuldades culturais e políticas, ainda permanecem verdadeiras as diferenças de doutrina - filioque e a supremacia papal - que fizeram a separação entre Roma e a Igreja Ortodoxa, assim como são as diferenças doutrinais o que ainda impede sua reconciliação. O Cisma foi para ambas as partes "um comprometimento espiritual, uma tomada de posição consciente em matéria de fé" (V.Lossky, in Mystical Theology of the Eastern Church. p. 13).

 

Tanto a Ortodoxia quanto Roma acreditam estarem certas e seu opositor errado sobre esses pontos de doutrina; de modo que Roma e a Ortodoxia têm desde o Cisma reivindicado o ser a verdadeira Igreja. Não obstante, cada qual, deve olhar o passado, enquanto acreditando nas suas próprias causas, com tristeza e arrependimento. Ambos os lados devem reconhecer honestamente que poderiam e deveriam ter feito mais para evitar o cisma. Ambos os lados foram culpados de erros a nível humano. Os ortodoxos, por exemplo, devem acusar-se de orgulho e desdém com o qual, durante o período bizantino, encararam o ocidente; devem acusar-se de incidentes como a revolta de 1182, quando muitos residentes latinos em Constantinopla foram massacrados pelo populacho bizantino. (Muito embora não haja qualquer ação por parte de Bizâncio comparável ao saque de 1204). E cada lado, ao proclamar-se a única verdadeira Igreja, deve admitir que ela foi empobrecida enormemente com a separação. O Oriente grego e o Ocidente latino precisavam e ainda precisam um do outro. Para ambos os lados o Grande Cisma provou ser uma grande tragédia.

 

10. Duas tentativas de Unidade

 

A controvérsia hesicasta

 

E m 1204 os cruzados estabeleceram um curto reinado em Constantinopla, que chegou ao fim em 1261 quando os gregos retomaram sua capital. Bizâncio sobreviveu por dois séculos mais, e esses anos experimentaram um renascimento cultural, artístico e religioso. Mas política e economicamente o restaurado Império Bizantino estava em estado precário, e encontrava-se mais e mais sem auxílio frente os exércitos turcos que o pressionavam do leste.

 

Duas tentativas importantes foram feitas para manter a união Cristã entre oriente e ocidente, a primeira no século XIII e a segunda no século XV. O espírito por trás da primeira tentativa foi Miguel VIII (reinou 1259-82), o Imperador que recuperou Constantinopla. Enquanto sem dúvida ele desejava sinceramente a união Cristã em bases religiosas, seu motivo era também político: ameaçado pelos ataques de Charles D’Anjou, Soberano da Sicília, ele precisava desesperadamente do apoio e proteção do Papa. Para se firmar no poder, ele pensou em recorrer ao Papado, de tal modo que um Concílio pela Unificação foi convocado em Lyon em 1274. Os delegados ortodoxos que aí compareceram concordaram em reconhecer a primazia do Papa e a recitar o Credo com o filioque. Mas, em Bizâncio, e nas outras regiões ortodoxas como a Bulgária, a unificação não foi aceita e a reação a ela pode ser resumida nas palavras da irmã do Imperador Miguel VII: "Melhor que o Império de meu irmão pereça, do que a pureza da fé ortodoxa”.O sucessor de Miguel repudiou as decisões de Lyon e o Imperador, julgado por "apostasia”, não recebeu sepultamento cristão.

 

Enquanto isso, Bizâncio continuava a viver numa atmosfera patrística, empregando as idéias e a linguagem dos Padres Gregos do sec. IV; no Ocidente, a tradição dos padres era substituída pela Escolástica, essa grande síntese entre filosofia e teologia elaborada nos séc. XII e XIII. Os teólogos ocidentais empregaram, a partir daí, novas categorias de pensamento, um método teológico novo e uma nova terminologia que o oriente não compreendia Os dois lados, numa extensão cada vez mais vasta, estavam perdendo o "universo de discurso" comum.

 

Bizâncio, por seu lado, também contribuiu para esse processo: aqui também houve desenvolvimento teológico em que o Ocidente não teve nem participação nem proveito, embora não houvesse nada tão radical quanto a revolução escolástica. Esse desenvolvimento teológico estava relacionado principalmente com a Controvérsia Hesicasta, uma disputa que despontou em Bizâncio em meados do séc. XIV, envolvendo a doutrina da natureza de Deus e os métodos de oração usados na Igreja Ortodoxa.

 

Para entender a Controvérsia Hesicasta será preciso recuar até a história remota da teologia mística do Oriente. As principais características dessa teologia mística foram elaboradas por Clemente (+253) e por Orígenes de Alexandria (+254), cujas idéias foram desenvolvidas pelos Capadócios do sec. XV, especialmente por Gregório de Nissa, e por Evágrio Pôntico (+399), um monge do deserto do Egito. Existem duas trilhas nessa teologia mística não exatamente opostas, mas certamente, à primeira vista, discrepantes: a "via da negação" e a "via da união”. A primeira - teologia apofática como é chamada - fala de Deus em termos negativos. Deus não pode ser apreendido adequadamente pela razão humana; a linguagem humana, quando aplicada a Ele, é sempre inexata. Por conseguinte, é menos enganador empregar a linguagem da negação com relação a Deus do que a da afirmação - recusar dizer o que Deus é, e afirmar simplesmente o que Ele não é. É como Gregório de Nissa coloca: "O verdadeiro conhecimento e visão de Deus consiste nisto: em ver que Ele é invisível, porque o que buscamos está além de todo o conhecimento ficando inteiramente isolado pela escuridão da incompreensibilidade”.

 

A teologia da negação alcança sua expressão clássica nos escritos de São Dinis, o Areopagita, convertido por Paulo em Atenas (atos, XVII, 34); mas na verdade os escritos são de um autor desconhecido que provavelmente viveu no final do século quinto e pertenceu a círculos simpáticos aos monofisitas. São Máximo, o Confessor (+662) compôs comentários aos seus escritos assegurando-lhes assim um lugar permanente na teologia ortodoxa. São Dinis teve também grande influência no Ocidente: calcula-se que foi citado 1760 vezes por São Tomás de Aquino na Suma Teológica, enquanto um cronista inglês do século quatorze registra que a Teologia Mística de São Dinis "corre pela Inglaterra como o cervo selvagem." A linguagem apofática de São Dinis foi repetida por muitos outros. "Deus é infinito e incompreensível," escreveu João Damasceno, "e tudo o que é compreensível sobre Ele é Sua infinitude e incompreensibilidade... Deus não pertence à classe das coisas existentes; não que Ele não tenha existência alguma, mas que Ele está acima de todas as coisas existentes — isto é, está mesmo acima da própria existência."

 

Essa ênfase na transcendência de Deus pareceria à primeira vista excluir qualquer experiência direta de Deus. Mas, na verdade, muitos daqueles que fazem amplo uso da teologia da negação — Gregório de Nissa, por exemplo ou Dinis, ou Máximo — também acreditavam na possibilidade de real união com a tradição dos místicos ou hesicastas (o nome hesicasta deriva da palavra grega hesychia, que significa silencioso. O hesicasta é aquele que em silêncio devota a sua vida ao recolhimento interior e à oração em segredo). Empregando a linguagem apofática da teologia da negação, esses autores pregavam a experiência imediata do Deus incognoscível, uma união pessoal com Ele que é inabordável. Como poderiam as duas vias se reconciliarem? Como pode ser Deus cognoscível e incognoscível a uma só vez?

 

Essa questão era pungente no século XIV, junto com a questão do papel do corpo na oração. Evágrio e Orígenes que emprestaram pesadamente do Platonismo, escreveram sobre a oração mais em termos intelectuais, sem admitir nenhum papel ao corpo do homem no processo de redenção e deificação.

 

Nas Homilias Macarias vemos, que o homem não é uma alma aprisionada num corpo, como no pensamento grego, mas um todo único e individualizado, alma e corpo juntos. Onde Evágrio fala de intelecto, Macário usa a idéia hebraica de coração, o que inclui o homem inteiro — não só o intelecto, mas vontade, emoção, e mesmo o corpo.

 

Empregando coração no sentido macárico, os ortodoxos freqüentemente falam de oração do coração. O que quer dizer esta expressão? Quando um homem começa a rezar, primeiro reza com os lábios, e tem que fazer um esforço intelectual consciente a fim de perceber o sentido do que está dizendo. Mas, se ele perseverar, orando continuamente com recolhimento, seu intelecto e seu coração se tornam unidos: ele "encontra o lugar do coração," seu espírito adquire o poder de "morar no coração," e assim sua oração se torna oração do coração." Ela se torna algo não apenas articulado pelos lábios, não apenas pensado pelo intelecto, mas oferecido espontaneamente por todo o ser do homem — lábios, intelecto, emoção, vontade e corpo. A oração preenche a consciência por completo, e não mais tem que ser empurrada para fora, mas ela própria se expressa a si mesma. Essa oração do coração não pode ser atingida pelos nossos próprios esforços, mas é um dom conferido pela graça de Deus.

 

Quando os escritores ortodoxos empregam o termo "oração do coração," eles geralmente têm em mente uma oração em particular, a oração de Jesus. Entre os escritores espirituais gregos, primeiro Diodocos da Fótica (meados do Séc. V) e depois São João Clímaco do Monte Sinai (579-649) recomendavam como uma forma especialmente válida de oração a repetição constante ou a lembrança do nome Jesus. Com o passar do tempo a Invocação cristalizou-se numa frase curta, conhecida como a oração de Jesus: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim pecador" (Cf. oração do publicano, Lc. 18:13). Por volta do séc.XIII, senão antes, a recitação da oração de Jesus tornou-se ligada a certos exercícios físicos, elaborados para ajudar a concentração. A respiração era cuidadosamente regulada a tempo com a oração, e uma postura corporal particular era recomendada: cabeça inclinada, queixo repousado no peito, olhos fixos, no lugar do coração. Este é freqüentemente chamado "o método de oração hesicasta," mas não deve ser entendido que para os hesicastas esses exercícios físicos constituem a essência da oração. Eles eram encarados não como um fim em si mesmos, mas como uma ajuda na concentração — como um acessório útil para alguns, mas não obrigatório para todos. Os hesicastas sabiam que não pode haver nenhum método mecânico de adquirir a graça de Deus, e nenhuma técnica conduzindo automaticamente ao estado místico.

 

Para os hesicastas de Bizâncio, a culminância da experiência mística era a visão da Luz Divina e Incriada. Os trabalhos de São Simeão, o Novo Teólogo (949-1022), o maior dos místicos bizantinos, estão repletos daquele "misticismo da Luz." Quando ele escreve sobre suas próprias experiências, ele a chama "fogo incriado e invisível, sem começo e imaterial." Os hesicastas acreditavam que essa luz que experimentavam era idêntica à Luz Incriada que os três discípulos viram ao redor de Jesus na Sua Transfiguração no Monte Tabor. Mas como seria a visão da Luz Divina reconciliada com a doutrina apofática de Deus, o transcendente e inabordável?

 

Já em pleno séc.XIV, Barlaão, o Calabrês, atacou os hesicastas dizendo que eles tinham uma visão por demais materialística da oração. A luz que os hesicastas contemplavam, em seu ponto de vista, não era a eterna luz da Divindade, mas uma luz criada e temporária.

 

A defesa dos hesicastas foi assumida por São Gregório Palamas (1296-1359), Arcebispo de Tessalônica. Ele sustentava uma doutrina do homem a qual permitia o uso dos exercícios físicos na oração, e argumentava, contra Barlaão, que os hesicastas de fato experenciavam a Luz Incriada e Divina do Tabor. Para explicar como isso era possível, Gregório desenvolveu a distinção entre a essência e as energias de Deus. Seus ensinamentos foram confirmados por dois Concílios reunidos em Constantinopla em 1341 e 1351.

 

Gregório começou por confirmar a doutrina bíblica do homem e da Encarnação. O homem é um todo único e individualizado; não apenas a mente do homem mas o homem inteiro foi criado à imagem de Deus. O corpo do homem não é um inimigo, mas um parceiro e um colaborador de sua alma. O Cristo, ao tomar um corpo humano pela Encarnação, fez "da carne uma fonte inexaurível de santificação." Aqui, Gregório retomou e desenvolveu as idéias implícitas em escritos anteriores, tais como as Homilias macarias; a mesma ênfase no corpo do homem, como vimos, está por trás da doutrina ortodoxa dos ícones. Gregório prosseguiu aplicando essa doutrina do homem aos métodos hesicastas de oração: os hesicastas, ele dizia, ao colocar tal ênfase no papel do corpo na oração, não são culpados de materialismo crasso, mas estão simplesmente mantendo-se fiéis à doutrina bíblica do homem como uma unidade. Cristo tomou carne humana e salvou o homem inteiro; por isso, é o homem inteiro — corpo e alma conjuntamente — que ora a Deus.

 

Daí, Gregório voltou-se para o problema principal: como combinar as duas assertivas, o homem conhece Deus e Deus é por natureza incognoscível? Gregório respondeu: nós conhecemos as energias de Deus mas não Sua essência. A distinção entre essência (ousia) e energia de Deus, remonta aos Padres Capadócios. "Nós conhecemos nosso Deus pelas Suas energias," escreveu São Basílio, "mas não alegamos que podemos chegar perto da Sua essência. Pois, Suas energias descem até nós, mas Sua essência permanece inabordável." Gregório aceitou essa distinção. Ele afirmava, tão enfaticamente como qualquer outro expoente da teologia da negação que Deus é em essência absolutamente incognoscível. "Deus não é uma natureza," escreveu, "pois Ele está acima de toda natureza; Ele não é um ser, pois está acima de todos os seres... nem uma única coisa dentre as que foram criadas terão jamais a menor comunhão com a suprema natureza, ou proximidade com ela." Mas, embora remoto em Sua essência, ainda assim, em Suas energias, Deus revelou-Se aos homens. Essas energias não são algo que existem em separado de Deus, nem um Dom que Deus confere aos homens: elas são o próprio Deus na Sua ação e revelação ao mundo. Deus existe completa e inteiramente em cada uma de Suas divinas energias. O mundo, como Gerard Manley Hopkins disse, é repleto da grandeza de Deus; toda a criação é uma gigantesca Sarça Ardente, permeada mas não consumida pelo inefável e assombroso fogo das energias de Deus.

 

É através dessas energias que Deus entra numa direta e imediata relação com a humanidade. Com relação ao homem, a energia divina não é de fato nada mais do que a graça de Deus; a graça não é só um ‘dom’ de Deus, não é só um objeto com que Deus reveste o homem, mas uma manifestação do próprio Deus vivo, uma confrontação pessoal entre criatura e Criador. "A Graça significa toda a abundância da natureza divina, na medida em que é comunicada ao homem." Quando dizemos que os santos foram transformados ou "deificados" pela graça de Deus, o que queremos dizer é que eles têm uma experiência direta do próprio Deus. Eles conhecem Deus — isto é, Deus em Suas energias, não na Sua essência.

 

Deus é Luz, e por isso a experiência das energias de Deus toma a forma de Luz. A visão que os hesicastas recebem é, conforme Palamas, não a visão de alguma luz criada, mas a própria Luz da divindade — mesma Luz da Divindade que envolveu Cristo no Monte Tabor. Essa Luz não é uma luz sensível ou material, mas pode ser vista com olhos físicos (tal como pelos discípulos na Transfiguração), já que quando um homem é deificado, suas faculdades corpóreas, assim como sua alma, são transformados. A visão dos hesicastas da Luz é, por isso, uma visão verdadeira de Deus em suas energias divinas; e eles estão corretos ao identificá-la com a Luz Incriada do Tabor.

 

Palamas, portanto, preservou a transcendência de Deus e evitou o panteísmo para o qual um misticismo sem reservas facilmente conduz; ainda, ele admitiu a imanência de Deus, Sua contínua presença no mundo. Deus permanece como o "Sagrado Outro," mas ainda assim, através das Suas energias (que são o próprio Deus) Ele entra em relação imediata com, o mundo. Deus é um Deus vivo, o Deus da história, o Deus da Bíblia, que se tornou Encarnado no Cristo.Barlaão, ao excluir todo conhecimento de Deus e afirmar que a Divina Luz é algo criado lançou um golfo muito largo entre Deus e o homem.A preocupação de Gregório ao opor-se a Barlaão era, portanto, a mesma de Atanásio e dos Concílios Gerais: salvaguardar a aproximação direta do homem a Deus sustentar a completa deificação do homem e sua inteira salvação. Aquela mesma doutrina presente nas disputas da Trindade, na Pessoa de Cristo, e nos santos Ícones, está também no coração da controvérsia Hesicasta.

 

 ‘No fechado mundo de Bizâncio,’ escreveu Dom Gregório Dix, ‘nenhum impulso surgiu depois do século sexto...o sono começou...no século nove, talvez ainda antes, no sexto’ As controvérsias bizantinas do século quatorze demonstram amplamente a falsidade de tal afirmação.Certamente, Gregório Palamas não era nenhum inovador revolucionário, mas firmemente enraizado nas tradições do passado; era também um teólogo criativo de primeira linha, e seu trabalho mostra que a teologia ortodoxa não cessou de estar ativa depois do sec.VIII e do Sétimo Concílio Ecumênico.

 

Entre os contemporâneos de Gregório Palamas houve o teólogo leigo Nicolau Cabasilas, que era simpático aos hesicastas, embora não intimamente envolvido na controvérsia. Cabasilas é o autor do Comentário sobre a Divina Liturgia. o qual se tornou o trabalho ortodoxo clássico sobre o assunto; ele também escreveu um tratado sobre os sacramentos entitulado A Vida em Jesus Cristo. Os escritos de Cabasilas são marcados por duas coisas em particular: um sentido vívido da pessoa do Cristo, "o Salvador," que, como ele coloca, "está mais perto de nós do que nossa própria alma"; e uma ênfase constante nos sacramentos. Para ele, a vida mística é essencialmente uma vida em Cristo e nos sacramentos. Há um perigo de que o misticismo se torne especulativo e individualista — divorciado da revelação histórica do Cristo e da vida corporativa da igreja com seus sacramentos; mas o misticismo de Cabasilas é sempre Cristocêntrico, sacramental, eclesial. Seus trabalhos mostram o quanto o misticismo e a vida sacramental estavam intimamente ligados na teologia bizantina. Palamas e o seu grupo não encaravam a oração mística como um meio de contornar a vida institucional normal da Igreja.

 

Um segundo Concílio para se tentar a reunificação das igrejas foi feito em Florença em 1438-1439, com a presença do próprio Imperador João VIII (reinou de 1425-1448) e do Patriarca de Constantinopla e uma grande delegação da Igreja Bizantina bem como representantes de outras Igrejas Ortodoxas. Houveram prolongadas discussões e um sério esforço de reunificação foi feito pelos dois lados para se atingir um verdadeiro acordo nos grandes pontos de disputa. Mas ao mesmo tempo era muito difícil para os gregos discutir teologia desapaixonadamente, pois eles sabiam que a situação política havia chegado a ponto de desespero: a única esperança de derrotar os turcos residia na ajuda do ocidente. Eventualmente uma fórmula de união foi desenhada cobrindo o filioque, Purgatório, pão ázimo e questões papais; e isso foi assinado por todos os Ortodoxos presentes no Concílio exceto um- Marco, Arcebispo de Éfeso, mais tarde canonizado pela Igreja Ortodoxa. A União Florentina,se firmava em dois princípios básicos: unanimidade em questões de doutrina; respeito pelos ritos legítimos e pelas tradições peculiares a cada Igreja. De modo que os ortodoxos concordaram com a primazia papal ( apesar daqui o texto da fórmula de união ser vago e ambíguo), com o filioque, com os ensinamentos latinos sobre o Purgatório (a dissensão sobre este ponto só veio às claras no século XIII) e, quanto aos pães ázimos, não houve nenhuma exigência: os bizantinos poderiam continuar celebrando, com o pão fermentado.

 

Mas, a União de Florença, embora celebrada por toda a Europa ocidental, provou não ser mais real do que o acordo de Lyon. Mesmo João VIII e seu sucessor Constantino XI, não ousavam proclamar seu assentimento ao acordo. Muitos daqueles que assinaram o documento em Florença, ao chegarem em casa, revogaram suas assinaturas. Os decretos do Concílio nunca foram aceitos por mais do que uma fração mínima do povo e clero Bizantino O Grão-duque Lucas Notaras, ecoando as palavras da irmã do Imperador depois de Lyon, disse: "Eu preferia ver o turbante muçulmano no meio da cidade do que ver a mitra latina."

 

João e Constantino tinham esperado que a União de Florença asseguraria ajuda militar do ocidente, mas eles receberam uma ajuda muito pequena. Em 7 de abril de 1453 os turcos começaram a atacar Constantinopla por terra e por mar. Superados na proporção de mais de vinte por um os bizantinos mantiveram uma defesa brilhante mas inútil por sete longas semanas Nas primeiras horas da manhã do dia 29 de Maio o último ofício cristão era feito na catedral de Santa Sofia. Foi um serviço que uniu Ortodoxos e Católicos Romanos, pois nesse momento de crise os apoiadores e os oponentes da União Florentina esqueceram suas diferenças. O Imperador saiu depois de receber comunhão, e morreu lutando nas muralhas Mais tarde, no mesmo dia, a cidade caiu na mão dos turcos, e a mais gloriosa igreja da Cristandade tornou-se uma mesquita.

 

Era o fim do Império Bizantino. Mas, não era o fim do Patriarcado de Constantinopla, e muito menos o fim da Ortodoxia.

 

11. Conversão dos Eslavos

 

"A religião da graça espalhou-se pela terra e finalmente atingiu o povo russo.

O Deus gracioso que cuidou de todos os outros povos não mais nos negligenciou.

É Seu desejo nos salvar e nos conduzir à razão"

(Hilarião, Metropolita da Rússia, 1051-1054).

 

Cirilo e Metódio.

 

Para Constantinopla a metade do nono século foi um período de intensa atividade missioná-ria. A Igreja Bizantina, livre afinal da longa luta contra os iconoclastas, virou sua energia para a conversão dos Eslavos pagãos que estavam além das fronteiras do Império, ao norte e noroeste — morávios, búlgaros, sérvios e russos. Photius foi o primeiro Patriarca de Constantinopla a iniciar um trabalho missionário de larga escala entre os eslavos. Ele selecionou para a tarefa dois irmãos, gregos de Tessalônica, Constantino (826-869) e Metódio (815-885). Na Igreja Ortodoxa Constantino é usualmente chamado de Cirilo, nome que ele recebeu ao tornar-se monge. Conhecido na vida prévia como "Constantino o Filósofo," ele era o mais capaz entre os pupilos de Photius, e tinha familiaridade com uma grande linha de línguas, incluindo hebreu, árabe e até mesmo com o dialeto samaritano. Mas a qualificação especial que ele e seu irmão tinham era seu conhecimento de eslavônico: na infância eles aprenderam o dialeto dos eslavos nos entornos de Tessalônica, e eles podiam falar esse dialeto fluentemente.

 

A primeira jornada missionária de Cirilo e Metódio foi uma curta visita em torno de 860 aos Khazars, que viviam no norte da região do Cáucaso. Essa expedição não teve resultados permanentes, e alguns anos depois os khazars adotaram o judaísmo. O trabalho real dos irmãos começou em 863 quando eles foram para a Morávia (grosseiramente equivalente as atuais Tcheco e Eslováquia). Eles foram para lá atendendo ao apelo do Príncipe dessas terras, Rostislav, que pediu que missionários Cristãos fossem enviados, capazes de pregar para o povo em sua própria língua e de celebrar ofícios em eslavônico. Serviços em eslavônico requeriam as Sagradas Escrituras em eslavônico e livros de ofício em eslavônico. Antes que eles partissem para a Morávia os irmãos envolveram-se num enorme trabalho de tradução. Eles precisaram primeiro inventar um alfabeto eslavônico adequado. Em suas traduções os irmãos usavam a forma de eslavônico que lhes era familiar desde a infância, que era o dialeto macedônio falado pelos eslavos que viviam em torno da Tessalônica. Desse modo o dialeto dos eslavos macedônios tornou-se o Eslavônico da Igreja, que permanece até os dias de hoje a linguagem litúrgica da Igreja Russa e de algumas outras Igrejas Ortodoxas eslavônicas.

 

Não se consegue superavaliar a importância, para o futuro da Ortodoxia, das traduções para o eslavônico que Cirilo e Metódio levaram consigo quando deixaram Bizâncio para o norte desconhecido. Poucos eventos foram tão importantes na história missionária da Igreja. Desde o início os Cristãos eslavos gozaram de um precioso privilégio, que nenhum dos povos da Europa ocidental teve nessa época: eles ouviram o evangelho e os serviços numa língua que eles podiam entender. Diferentemente da Igreja de Roma no oeste com sua insistência no latim, a Igreja Ortodoxa nuca foi rígida em matéria de língua; sua política normal é celebrar os ofícios na língua do povo.

 

Na Morávia, assim como na Bulgária, a missão grega logo chocou-se com missionários alemães trabalhando na mesma área. As duas missões não só dependiam de Patriarcados diferentes, mas também trabalhavam com diferentes princípios. Cirilo e Metódio usavam eslavônico em seus ofícios, os alemães, latim, Cirilo e Metódio recitavam o Credo em sua forma original, os alemães introduziram o filioque. Para livrar sua missão da interferência alemã, Cirilo decidiu coloca-la sob a proteção imediata do Papa. A ação de Cirilo apelando a Roma mostra que ele não levava muito a sério a disputa entre Photius e Nicolau; para ele leste e oeste ainda estavam unidos como uma única Igreja, e não era uma questão de primária importância se ele dependia de Constantinopla ou de Roma, desde que ele pudesse continuar a usar o eslavônico nos ofícios da Igreja. Os irmãos viajaram para Roma em 868 e tiveram pleno sucesso em seu apelo. Adriano II, sucessor de Nicolau I, recebeu-os favoravelmente e deu total suporte para a missão grega, confirmando o eslavônico como a língua litúrgica da Morávia. Ele aprovou as traduções dos irmãos, e colocou cópias dos livros de ofícios em eslavônico nos altares das principais Igrejas da cidade.

 

Cirilo morreu em Roma (869), mas Metódio retornou a Morávia. É triste dizer isto, os alemães ignoraram a decisão do Papa e obstruíram Metódio de toda a forma possível, até colocando-o na prisão por mais de um ano. Quando Metódio morreu em 885, os alemães expeliram seus seguidores da Morávia, vendendo numerosos como escravos. Traços da missão eslavônica permaneceram na Morávia por mais dois séculos, mas foram finalmente erradicados; e o Cristianismo na sua forma ocidental, com cultura latina e língua latina (e lógico o filioque), implantou-se. A tentativa de fundar uma Igreja eslavônica nacional na Morávia resultou em nada. O trabalho de Cirilo e Metódio, então pareceu ter terminado em fracasso.

 

No entanto, de fato, não foi assim. Outros povos, para os quais os irmãos não pregaram pessoalmente, beneficiaram-se do trabalho deles, mais notavelmente búlgaros, sérvios e russos. Bóris, Khan da Bulgária, como já vimos, oscilou algum tempo entre o leste e o oeste, mas finalmente aceitou a jurisdição de Constantinopla. Os missionários bizantinos na Bulgária, no entanto, não tendo a visão de Cirilo e Metódio, de início usaram grego nos ofícios da Igreja, uma língua tão ininteligível como latim para o búlgaro comum. Mas depois de sua expulsão da Morávia, os discípulos de Metódio foram naturalmente para a Bulgária, e ali introduziram os princípios empregados na missão morávia. Grego foi substituído pelo eslavônico, e a cultura Cristã de Bizâncio foi apresentada aos búlgaros em forma eslavônica que eles podiam assimilar. A Igreja búlgara cresceu rapidamente. Em torno de 926, durante o reinado do Tsar Simeão o Grande (reinou 823-927), um Patriarcado Búlgaro independente foi criado, e foi reconhecido pelo Patriarcado de Constantinopla em 927. O sonho de Bóris — uma Igreja autocéfala própria — tornou-se realidade antes de meio século depois de sua morte.

 

Missionários bizantinos foram também para a Sérvia, que aceitou o Cristianismo na segunda metade do século nono, entre 867-874. A Sérvia também oscilou entre o Cristianismo do leste e o do oeste, mas depois de um período de incerteza segui o exemplo da Bulgária e não da Morávia, e aceitou a jurisdição. Também na Sérvia os livros de ofícios em eslavônico foram introduzidos e desenvolveu-se uma cultura eslavônica-bizantina. A Igreja Sérvia ganhou uma independência parcial sob São Savas (1176-1235), o maior dos santos nacionais sérvios, que em 1219 foi consagrado em Nicéia como Arcebispo da Sérvia. Em 1346 foi criado um Patriarcado Sérvio, que foi reconhecido pela Igreja de Constantinopla em 1375.

 

A conversão da Rússia também é devida ainda que indiretamente ao trabalho de Cirilo e Metódio, mas isso falaremos na próxima seção do livro. Com búlgaros, sérvios e russos como suas "crianças espirituais," os dois gregos inquestionavelmente merecem seu título, "Apóstolos dos Eslavos."

 

Outra nação Ortodoxa nos Balcãs, Romênia, tem uma história mais complexa. Os romenos, ainda que influenciados pelos seus vizinhos eslavos, são primariamente latinos em língua e caráter étnico. A Dácia, correspondendo a parte da moderna Romênia, foi uma província romana entre 106-271; mas as comunidades Cristãs ali fundadas nesse período parecem ter desaparecido depois da retirada romana. Parte do povo romeno aparentemente foi convertido ao Cristianismo pelos búlgaros no final do século nono ou começo do décimo século, mas a conversão completa dos dois principados romenos de Walaquia e Moldávia, só ocorreu no século catorze. Aqueles que pensam que a ortodoxia como sendo exclusivamente "do leste," com caráter grego e eslavo, deveriam prestar atenção no fato de que a Igreja Romena, a segunda maior Igreja Ortodoxa hoje em dia, é predominantemente latina.

 

Bizâncio conferiu dois presentes aos eslavos: um sistema completamente articulado de doutrina Cristã e uma civilização Cristã completamente desenvolvida. Quando a conversão dos eslavos começou no século nono, o grande período de controvérsias doutrinais, a era dos Sete Concílios, chegarem ao fim; as principais linhas da fé — as doutrinas da Trindade e da Encarnação -já haviam sido trabalhadas, e foram entregues aos eslavos na sua forma definitiva. Talvez seja por isso que as Igrejas eslavônicas produziram poucos teólogos originais, sendo que as disputas religiosas que surgiram nas terras eslavônicas usualmente não foram de caráter dogmático. Mas essa fé na Trindade e na Encarnação não existiu num vácuo; com ela ia toda uma cultura e civilização, e isso também os missionários gregos trouxeram com eles de Bizâncio. Os eslavos foram Cristianizados e civilizados ao mesmo tempo.

 

Os gregos comunicaram essa fé e essa civilização não com uma roupagem estrangeira, mas sim com uma roupagem eslava (aqui as traduções de Cirilo e Metódio foram de capital importância); o que os eslavos tomavam emprestado de Bizâncio, a seguir eles eram capazes de fazer por si próprios. A cultura bizantina e a fé Ortodoxa se de início ficaram limitadas às classes dirigentes, com o tempo tornaram-se parte integral da vida diária do povos eslavônicos como um todo. A ligação entre a Igreja e o povo foi tornado ainda mais firme pelo sistema de se criar Igrejas nacionais independentes.

 

Certamente essa forte identificação da Ortodoxia com a vida do povo, e em particular o sistema de Igrejas nacionais, tiveram conseqüências desafortunadas. Porque Igreja e nação estiveram tão fortemente associadas, os Ortodoxos eslavos freqüentemente confundiram as duas coisas e fizeram a Igreja servir aos fins de políticas nacionais; eles algumas vezes tenderam a pensar em sua fé como primariamente sérvia, russa, ou búlgara, e esqueceram que ela era primariamente Ortodoxa e Católica. Nacionalismo tem sido o veneno da Ortodoxia pelos últimos dez séculos. Apesar disso, a integração da Igreja e do povo provou no fim ser imensamente benéfica. O Cristianismo entre os eslavos tornou-se na verdade a religião de todo povo, uma religião popular no verdadeiro sentido. Em 1949 os comunistas da Bulgária editaram uma lei que definiu: "A Igreja Ortodoxa búlgara é na forma, na substância e no espírito uma Igreja Democrática Popular." Tire-se a palavra de suas associações política, e por trás delas está uma importante verdade.

 

12. O Batismo da Rússia

 

O período de Kiev (988-1237).

 

Photius fez também planos de converter os eslavos da Rússia. Em torno de 864 ele enviou um bispo paras a Rússia, mas essa primeira fundação Cristã foi exterminada por Oleg, que assumiu o poder em Kiev (a cidade mais importante da Rússia na época) em 878. A Rússia continuou no entanto a sofrer uma firme infiltração de Bizâncio, Bulgária e Escandinávia, e existiu certamente uma Igreja em Kiev em 945. A Princesa Russa Olga tornou-se Cristã em 955, mas seu filho Svyatoslav recusou-se a seguir seu exemplo, dizendo que sua comitiva riria dele se ele recebesse o batismo Cristão. Mas em 988 o neto da Princesa Olga, Vladimir (reinou 980-1015) converteu-se ao Cristianismo e casou com Ana, a irmã do Imperador Bizantino. A Ortodoxia tornou-se a religião de Estado da Rússia, e assim permaneceu até 1917. Vladimir pôs-se a Cristianizar seu reino com determinação: padres, relíquias, vasos sagrados, e ícones foram importados; batismos em massa eram feitos nos rios; Igrejas foram construídas e dízimos eclesiásticos foram instituídos. O grande ídolo do deus Perun, com sua cabeça de prata e seus bigodes de ouro, foi rolado ignominiosamente pela colina abaixo em Kiev. "As trombetas dos Anjos e os trovões dos Evangelhos soaram por todas as cidades. O ar estava santificado com incenso que ascendia para Deus. Mosteiros mostravam-se nas montanhas. Homens e mulheres, pequenos e grandes, todo povo enchia as santas igrejas" (citado de G. P. Fedorov, The Russian Religious Mind, p. 410). Assim o Metropolita Hilarião descreveu o evento sessenta anos depois, sem dúvida idealizando um pouco, pois a Rússia de Kiev não foi completamente convertida de uma vez ao Cristianismo, e a Igreja esteve no começo restrita principalmente as cidades, enquanto a maior parte do campo permaneceu pagã até os séculos catorze e quinze.

 

Vladimir colocou a mesma ênfase nas implicações sociais do Cristianismo como João o Misericordioso tinha feito. Qualquer comemoração na sua corte, tinha a seguir distribuição de comida para os pobres e doentes; em nenhum outro lugar da Europa medieval existiu tão altamente organizados tais "serviços sociais" como na Kiev do décimo século. Outros dirigentes da Rússia de Kiev seguiram o exemplo de Vladimir. O Príncipe Vladimir Monomachos (reinou 1113-1125) escreveu em seu Testamento para seus filhos: "Acima de todas as coisas não se esqueçam dos pobres, e suportemos até a extensão de vossos meios. Dêem para os órfãos, protejam as viúvas, e não permitam aos poderosos destruir ninguém" (citado em G. Vernadsky, Kievan Rússia, New Haven, 1948, p. 195). Vladimir estava também profundamente consciente da lei Cristã da misericórdia, e quando ele introduziu o código de leis bizantino em Kiev, ele insistiu em mitigar seus aspectos mais selvagens e brutais. Não existia pena de morte na Rússia de Kiev, mutilação, nem tortura; punição corporal era muito pouco (em Bizâncio a pena de morte existia, mas dificilmente era aplicada; a punição por mutilação, no entanto era empregada com freqüência aflitiva).

 

A mesma gentileza pode ser vista na história dos filhos de Wladimir, Boris e Gleb. Na morte de Wladimir, em 1015, o filho mais velho Svyatopolk tentou tomar os territórios dos irmãos mais novos Boris e Gleb. Obedecendo literalmente os mandamentos dos Evangelhos, eles não ofereceram resistência, apesar de que poderiam tê-lo feito facilmente; e cada um na sua vez foi morto pelos emissários de Svyatopolk. Se qualquer sangue tivesse que ser derramado, Boris e Gleb preferiram que fosse o deles próprio. Apesar deles não serem mártires pela fé, mas vítimas de uma disputa política, foram ambos canonizados, tendo recebido título especial de "suportadores da paixão." Foi sentido que pelo seu sofrimento voluntário e inocente eles partilharam da Paixão de Cristo. Os russos sempre deram ênfase para questões que resultavam sofrimento para aqueles que perseguiam a vida cristã.

 

Na Rússia de Kiev, em Bizâncio e no Oeste medieval, os mosteiros tiveram um papel importante. O mais influente de todos eles foi o de Petchersky Lavra, o Mosteiro das Grutas, em Kiev. Fundado por volta de 1051 por Santo Antonio, um russo que vivera no Monte Athos, ele foi reorganizado pelo seu sucessor São Teodosius (morto em 1074), que introduziu ali as regras do Mosteiro de Studium, em Constantinopla. Como Wladimir, Teodosius estava consciente das conseqüências sociais do Cristianismo e a isso aplicou-se de maneira radical, identificando-se fortemente com os pobres, muito como São Francisco de Assis no oeste. Boris e Gleb seguiram Cristo em sua morte sacrificial; Teodosius seguiu Cristo em sua vida de pobreza e "esvaziando-se" voluntariamente. De nascimento nobre, ele escolheu desde criança usar roupas grosseiras e remendadas e trabalhar nos campos com os escravos. "Nosso Senhor Jesus Cristo," ele dizia, "tornou-se pobre e humilhou-Se, oferecendo a Si próprio como um exemplo; portanto devemos nos humilhar em Seu nome. Ele sofreu insultos, cuspiram n’Ele, bateram n’Ele, para nossa salvação; sendo justo então que soframos para ganhar Cristo" (Nestor, "Life of Saint Theodosius," In G.P. Fedotov, A Treasury of Russian Spirituality, p 27). Mesmo usando roupas simples e rejeitando todos os sinais externos de autoridade, ele era honorável amigo e conselheiro de nobres e príncipes. O mesmo ideal de humildade é visto em outros, por exemplo o Bispo Lucas de Wladimir (morto em 1185) que, nas palavras de Vladimir Chronicle "carregou sobre si a humilhação de Cristo, não tendo uma cidade aqui, mas procurando uma cidade futura." É um ideal encontrado freqüentemente no folclore russo e em escritores como Tolstoi e Dostoyevsky.

 

Wladimir, Boris e Gleb e Teodosius foram intensamente preocupados com as implicações práticas dos Evangelhos: Wladimir preocupava-se com a justiça social e era seu desejo que os criminosos fossem tratados com misericórdia; Boris e Gleb preocupavam-se em seguir Cristo em seu sofrimento e morte voluntários; Teodosius identificava-se com os humildes. Esses quatro santos incorporam alguns dos mais atrativos aspectos do Cristianismo de Kiev.

 

A Igreja Russa, durante o período de Kiev, era submetida a Constantinopla e até 1237 os Metropolitas da Rússia eram usualmente gregos. Em memória dos dias quando o Metropolita vinha de Bizâncio, a Igreja Russa continua a cantar em grego a saudação solene a um bispo, eis polla eti, deposta (muitos anos, ó Mestre). Mas cerca de metade dos bispos eram russos nativos em Kiev nesse período, tendo entre eles, inclusive, um judeu convertido e um sírio.

 

Kiev gozava de boas relações não só com Bizâncio, mas também com a Europa Ocidental e certos aspectos na organização do começo da Igreja Russa, como os dízimos eclesiásticos, não eram bizantinos mas sim ocidentais. Muitos santos ocidentais que não aparecem no calendário bizantino eram venerados em Kiev. Numa oração para a Santíssima Trindade, composta na Rússia no século onze, lista santos ingleses como Albano e Botolfo, e um santo francês, São Martinho de Tours. Alguns escritores até mesmo argüiram que até 1054 a Cristandade Russa era tão latina quanto grega, mas isso é um grande exagero. A Rússia esteve mais perto do ocidente no período de Kiev do que em qualquer outro período, até o reinado de Pedro, o Grande. Mas a Rússia deve imensamente mais para a cultura bizantina do que para a cultura latina. Napoleão estava historicamente correto quando ele chamou o Imperador da Rússia, Alexandre I, de "um grego do Baixo Império."

 

É dito que o maior infortúnio da Rússia foi ela ter tido muito pouco tempo para assimilar a total herança espiritual de Bizâncio. Em 1237, a Rússia de Kiev foi levada para um súbito e violento fim pelas invasões mongóis; Kiev foi saqueada e a Rússia toda foi ocupada, exceto o extremo norte em torno da Noruega. Um visitante da corte mongol, em 1246, relata que ele não viu no território russo nem cidade nem vila, mas só ruínas e incontáveis caveiras humanas. Mas se Kiev foi destruída, o Cristianismo de Kiev permaneceu uma memória viva.

 

A Rússia de Kiev, como os dias dourados da infância, nunca foi apagada da memória da nação russa. Em seus escritos, que são trabalhados literários que transmitem de forma pura a religião ortodoxa, qualquer um pode (se desejar) matar sua sede religiosa; em seus veneráveis autores pode-se encontrar um guia para atravessar as complexidades do mundo moderno. A Cristandade de Kiev tem o mesmo valor para a mente religiosa russa como Pushkin para o senso artístico russo: aquele de um padrão, uma medida dourada, um caminho real (G. Iedotov, The Russian Religious Mind, pág. 412).

 

13. A Igreja Sob o Islam

 

"A estável perseverança nesses nossos dias da Igreja Grega [...]

não obstante a opressão e o desprezo postos sobre ela pelos turcos

e as atrações e prazeres desse mundo,

é uma confirmação não menos convincente

que os milagres e poder que estiveram presentes em seu começo,

pois na verdade é admirável ver e considerar

com que constância resolução e simplicidade

homens pobres e ignorantes mantém sua fé"

 

(Sir Paul Rycaut,

The Present State of the Greek and Armenian Churches, 1679).

 

 

 

Imperium in império.

 

É "completamente antinatural ver-se o crescente exaltado por toda parte onde a Cruz esteve triunfante por longo tempo," assim escreveu Edward Browne, em 1677, logo após sua chegada como Capelão da Embaixada Inglesa em Constantinopla. Para os gregos em 1453 deve ter sido também completamente antinatural. Por mais de mil anos os homens consideraram o Império Cristão de Bizâncio garantido como um elemento permanente da economia providencial de Deus para o mundo. Agora a "cidade protegida por Deus" caiu, e os gregos estavam sob o comando dos infiéis.

 

Não foi uma transição fácil; mas ela foi facilitada pelos próprios turcos que trataram dos assuntos cristãos com notável generosidade. Os maometanos do século quinze eram muito mais tolerantes com o cristianismo do que os cristãos ocidentais eram uns com os outros durante a reforma e no século dezessete o Islam vê a Bíblia como um livro santo e Jesus Cristo como um profeta; aos olhos dos muçulmanos, portanto, a religião cristã é incompleta mas não completamente falsa, e cristãos sendo "Povo do Livro," não deveriam ser tratados no mesmo nível que os meros pagãos. De acordo com os ensinamentos maometanos, os cristãos não deveriam sofrer perseguição, mas deveriam continuar sem interferência na observância de sua fé, contanto que eles se submetessem mansamente ao poder temporal do Islam.

 

Esses foram os princípios que guiaram o conquistador de Constantinopla, o Sultão Mohamed II. Antes da queda da cidade, os gregos o chamavam "O Precursor do AntiCristo e o segundo Senaqueribe," mas eles acabaram descobrindo que na prática o domínio do Sultão tinha um caráter muito diferente. Ouvindo que o cargo de Patriarca estava vago, Mohamed convocou o monge Genadio e instalou-o no trono patriarcal. Genadio (1450 — 1472), conhecido como George Scolarios, antes de se tornar monge era um escritor prolífico e o líder dos teólogos gregos de seu tempo. Ele era um oponente determinado da Igreja de Roma, e sua escolha como Patriarca significou o abandono final da União de Florença. Sem dúvida que por razões políticas, o Sultão deliberadamente escolheu um homem de convicções anti-latinas: com Genadio como Patriarca haveria menos possibilidade dos gregos procurarem ajuda secreta dos poderes católico romano.

 

O próprio Sultão instituiu o Patriarca, investindo-o cerimonialmente com seu estafe, exatamente como os autocratas de Bizâncio faziam anteriormente. A ação era simbólica: Mohamed, o Conquistador, campeão do Islam, tornou-se também o protetor da Ortodoxia, tomando o papel anteriormente exercido pelo Imperador Cristão. Assim, aos Cristão foi assegurado um lugar definido na sociedade da ordem turca; mas, como os Cristãos logo iriam descobrir, era um lugar de garantida inferioridade. O Cristianismo sob o Islam era uma religião de segunda classe e seus aderentes também de segunda classe. Eles pagavam taxas pesadas, usavam roupas distintas, não estavam autorizados a servir no exército e eram proibidos de casar com muçulmanos; a Igreja não podia fazer trabalho missionário e era crime converter um muçulmano ao Cristianismo. Do ponto de vista material havia todo incentivo para um Cristão cometer apostasia convertendo-se ao Islam. Perseguição direta muitas vezes serve para fortalecer uma Igreja; mas para os gregos no Império Otomano, eram negados os mais heróicos meios de testemunhar sua fé, e ao contrário eram sujeitos aos efeitos desmoralizantes de uma intensa e continuada pressão social.

 

E isso não era tudo. Depois da queda de Constantinopla à Igreja não foi permitido reverter à situação anterior à conversão de Constantino; paradoxalmente suficiente, as coisas de César tornaram-se então mais fortemente associadas com as coisas de Deus do que tinham sido em qualquer época anterior. Pois os maometanos não viam qualquer distinção entre religião e política: do seu ponto de vista, se o Cristianismo era para ser reconhecido como uma fé religiosa independente, era necessário, então, para os Cristão estarem organizados em uma unidade política independente, um Império dentro do Império. A Igreja Ortodoxa tornou-se portanto uma instituição tanto civil quanto religiosa: ela foi então tornada na Rum Millet, a "nação romana." A estrutura eclesiástica foi tomada in toto como um instrumento da administração secular. Os Bispos tornaram-se oficiais governantes, o Patriarca era não só a cabeça espiritual da Igreja Ortodoxa Grega, mas também a cabeça civil da nação grega — o ethnarch ou millet-bashi. Essa situação continuou na Turquia até 1923 e em Chipre até a morte do Arcebispo Makarios III (1977).

 

O sistema millet prestou um serviço inestimável: ele tornou possível a sobrevivência da nação grega como uma unidade distinta através de quatro séculos de domínio estrangeiro. Mas na vida da Igreja ele teve dois efeitos melancólicos. Primeiro ele levou a uma triste confusão entre Ortodoxia e nacionalismo. Com sua vida civil e política inteiramente organizada em torno da Igreja, a fé Ortodoxa, sendo universal, não é limitada a nenhum povo, cultura ou língua; para os gregos no Império Turco "helenismo" e Ortodoxia tornaram-se inextrincavelmente entrelaçadas, muito mais do que tinham estado em qualquer período do Império Bizantino. Os efeitos dessa confusão continua até os dias de hoje.

 

Em segundo lugar, a alta administração da Igreja tornou-se presa de um degradante sistema de corrupção e simonia. Envolvidos como eles estavam em assuntos mundanos e questões políticas, os Bispos caíram presas da ambição e ganância financeira. Cada novo Patriarca precisava de um berat dado pelo sultão antes de assumir o posto, e por esse documento ele era obrigado a pagar pesadamente O Patriarca recuperava suas despesas do Episcopado, exigindo uma taxa de cada Bispo antes de instituí-lo em sua Diocese; os Bispos por sua vez taxavam os clérigos paroquiais, e o clero taxava seu rebanho. aquilo que foi dito uma vez sobre o Papado, foi certamente verdadeiro no patriarcado ecumênico sob os turcos tudo estava à venda.

 

Quando havia vários candidatos ao trono patriarcal, os turcos virtualmente vendiam-no ao candidato que pagasse mais; e eles foram rápidos em concluir que era no seu interesse financeiro trocar os patriarcas tão freqüentemente quanto possível, pois haveria assim múltiplas ocasiões para vender o berat. Patriarcas eram removidos e instalados com caleidoscópica rapidez. "De 159 patriarcas que ocuparam o trono entre o décimo quinto e o vigésimo século, os turcos em 105 ocasiões retiraram o patriarca de seu trono; existiram 27 abdicações, freqüentemente involuntárias; 6 patriarcas sofreram morte violenta por enforcamento, envenenamento ou afogamento e só 24 tiveram morte natural enquanto estavam no exercício do cargo" (B.J. Kioo, The Churches of Eastern, London, 1927, pág. 304).

 

O mesmo homem, às vezes, ocupava quatro ou cinco vezes o mesmo cargo em diferentes ocasiões e existiam usualmente muitos ex-patriarcas observando inquietamente do exílio por uma chance de retornar ao trono. A extrema insegurança do patriarca naturalmente dez crescer contínuas intrigas entre os metropolitas do Santo Sínodo que esperavam sucedê-lo, ficando então os líderes da igreja separados em amargos partidos hostis. "Todo bem cristão," escreveu um inglês residente no levante no século dezessete, "tem obrigação de considerar com tristeza, e contemplar com compaixão essa outrora gloriosa Igreja dilacerar-se e por para fora seus intestinos, e dá-los como comida aos abutres e corvos, e para selvagens e ferozes criaturas do mundo." (Sir Paul Rycaut, The Present Status of de Greek and Armenian Churches, London, 1679, pág. 107).

 

Mas se o Patriarca de Constantinopla sofreu um decaimento interno, externamente seu poder se expandiu como nunca antes. Os turcos olhavam o Patriarca de Constantinopla como a cabeça de todos os cristãos ortodoxos em seus domínios. Os outros Patriarcas do Império Otomano — Alexandria, Antioquia, Jerusalém — permaneceram teoricamente independentes, mas eram na prática subordinados. As Igrejas da Bulgária e da Sérvia — também dentro do domínio turco — gradualmente perderam sua independência, e pela metade do século dezoito passaram diretamente para o controle do Patriarca Ecumênico, mas no século dezenove, quando o poder turco diminuiu, as fronteiras do patriarcado contraíram-se. As nações que ganharam liberdade dos turcos acharam impraticável permanecerem sujeitas eclesiasticamente a um patriarca residente na capital turca e fortemente envolvido com o sistema político turco. O Patriarca resistiu o quanto pode, mas em cada caso ele inclinou-se eventualmente para o inevitável. Uma série de Igrejas nacionais foram tiradas do patriarcado: a Igreja da Grécia (organizada em 1833, reconhecida pelo patriarcado de Constantinopla em 1850; A Igreja da Romênia (organizada em 18__4, reconhecida em 1855); a Igreja da Bulgária (estabelecida em 1871, não reconhecida por Constantinopla até 1945); a Igreja da Sérvia (restaurada e reconhecida em 1879). A diminuição do patriarcado continuou no século vinte, principalmente como resultado da guerra e seus membros são agora uma pequena fração do que um dia foi nos gloriosos dias da suserania otomana.

 

A ocupação turca teve dois efeitos opostos na vida intelectual da Igreja. Foi, de um lado, a causa de um imenso conservadorismo e, de outro lado, de uma certa ocidentalização. A ortodoxia sob os turcos sentiu-se na defensiva. O grande objetivo era a sobrevivência — manter as coisas andando na esperança de dias melhores a vir. Os gregos agarraram-se com miraculosa tenacidade à civilização cristã que eles haviam tomado de Bizâncio, mas eles tiveram poucas oportunidades de desenvolver essa civilização criativamente. Compreensivelmente, normalmente eles eram contidos em repetir a fórmula, a entrincheirar-se nas posições que eles haviam herdado do passado. O pensamento grego passou por uma "calcificação" e endurecimento o que não pode deixar de ser lamentado; no entanto conservadorismo tem suas vantagens. Num período negro e difícil os gregos mantiveram a tradição ortodoxa substancialmente não prejudicada. A ortodoxia sob o Islam tomou como seu guia as palavras de Paulo a Timóteo: "Guarda o depósito que te foi confiado" (I Ti 6:20). Poderiam eles no fim ter escolhido um motto melhor?

 

No entanto, junto com esse tradicionalismo, existe uma outra e contrária corrente na teologia ortodoxa dos décimo sétimo e décimo oitavo séculos: a corrente da infiltração ocidental. Era difícil para a ortodoxia sob o domínio otomano manter um bom padrão de escolaridade. Gregos que queriam uma melhor educação eram obrigados a viajar para o mundo não ortodoxo — Itália, Alemanha, Paris e para ainda mais longe, como Oxford. Entre os teólogos gregos destacados no período turco, poucos estudaram autodidaticamente, sendo que a imensa maioria foi treinada no ocidente sob mestres católicos romanos ou protestantes.

 

Inevitavelmente isso teve um efeito sobre o modo segundo o qual eles interpretaram a teologia ortodoxa. Certos estudantes gregos estando no ocidente leram os padres, mas eles só se tornaram conhecedores dos temas dos padres que eram da estima de seus professores não ortodoxos. Assim. Gregório Palamas ainda era lido, em seus ensinamentos espirituais, pelos monges do Monte Athos; mas os trabalhos desse santo eram totalmente desconhecidos mesmo pelos mais instruídos teólogos gregos do período turco. Nos trabalhos de Eustratios Argenti (morto 1758?), o mais capaz dos teólogos gregos de seu tempo, não há uma única citação de Palamas; e seu caso é típico. É simbólico do estado do aprendizado grego-ortodoxo dos últimos quatro séculos, que uma das principais obras de Palamas, As tríades em defesa dos santos hesicastas tenha permanecido não publicada em grande parte, até 1959.

 

Existia um perigo real que gregos que estudassem no ocidente, ainda que permanecendo completamente fiéis em intenção à sua própria igreja, viessem a perder a mentalidade ortodoxa e se tornarem separados da ortodoxia como uma tradição viva. Era difícil para eles não olharem a teologia através da ótica ocidental; conscientes ou não, eles usaram terminologia e formas de argumentação estrangeiras à sua própria igreja. A Teologia Ortodoxa passou por aquilo que o teólogo russo Padre Georges Florovsky (1893-1979) classificou apropriadamente de pseudo-morphosis. Os pensadores religiosos do período turco podem ser divididos na sua maior parte em dois grandes grupos, os "latinizadores" e os "protestantedores." Mesmo assim a extensão dessa ocidentalização não pode ser exagerada. Os gregos usaram as formas exteriores que eles tinham apreendido no ocidente, mas na substância do seu pensamento a grande maioria permaneceu fundamentalmente ortodoxa. A tradição era às vezes distorcida por ser forçada a se adaptar a modelos estrangeiros — distorcidas mas não completamente destruída.

 

14. Reforma e Contra-Reforma:

 

Seus Duplos Impactos

 

As forças da reforma pararam assim que alcançaram as fronteiras da Rússia e do Império Otomano Turco, de maneira que a Igreja Ortodoxa não passou bem por uma reforma nem por uma contra-reforma. Seria no entanto um erro concluir que esses dois movimentos não tiveram qualquer influência sobre a Ortodoxia. Existiram muitos meios de contato. Ortodoxos, como já vimos, foram estudar no Ocidente. Jesuítas e franciscanos, enviados para o Mediterrâneo Oriental, assumiram trabalho missionário entre os Ortodoxos; os jesuítas trabalharam também na Ucrânia. As embaixadas em Constantinopla, tanto dos Católicos Romanos, quanto dos Protestantes, tiveram tanto um papel religioso assim como político. Durante o século dezessete esses contatos conduziram a desenvolvimentos significativos na teologia ortodoxa.

 

A primeira troca de ponto de vista entre os Ortodoxos e Protestantes começou em 1573 quando uma delegação de eruditos luteranos de Tübingen, liderados por Jacob Andreae e Martin Crusius, visitou Constantinopla e deu ao Patriarca Jeremias II uma cópia da Confissão de Augsburgo traduzida para o grego. Sem dúvidas eles esperavam iniciar uma espécie de reforma entre os gregos; como Crusius um tanto ingenuamente escreveu: "Se eles quiserem tomar ensinamentos para a salvação eterna de suas almas, eles devem se juntar a nós e abraçar nossos ensinamentos ou então perecer eternamente!." Jeremias, no entanto, em suas três respostas para os teólogos de Tübigen (datadas de 1576, 1579, 1581), aderiu estritamente à posição ortodoxa tradicional e não mostrou nenhuma inclinação para o Protestantismo. Os Luteranos mandaram respostas para as duas primeiras cartas, mas em sua terceira carta, sentindo que os assuntos tinham atingido um beco sem saída, estava dito: "Sigam à seu modo e não escrevam nunca mais sobre assuntos doutrinais; e se escreverem, escrevam só pela amizade." O incidente mostra o interesse sentido pelos reformadores pela Igreja Ortodoxa. As respostas do Patriarca são importantes como sendo a primeira e autorizada crítica das doutrinas da Reforma sob o ponto de vista ortodoxo. Os principais assuntos discutidos por Jeremias foram livre arbítrio e graças, escrituras e tradição, os Sacramentos, orações para os mortos e orações para os santos.

 

Durante o interlúdio de Tübigen, Luteranos e Ortodoxos mostraram grande cortesia uns para os outros. Um espírito muito diferente marcou o primeiro contato entre a Ortodoxia e a Contra-Reforma. Isso ocorreu fora dos limites do Império Turco, na Ucrânia. Depois da destruição do poder de Kiev pelos Tártaros, uma grande área no sudoeste da Rússia, incluindo a própria cidade de Kiev, foi absorvida pela Lituânia e Polônia; essa parte sudoeste da Rússia é conhecida como Pequena Rússia ou Ucrânia. As colônias da Polônia e Lituânia estavam unidas sob um único poder desde 1386; assim, enquanto o monarca desse reino conjunto e a maioria da população era católico-romana, uma apreciável minoria dos seus súditos era russa e Ortodoxa. Esses Ortodoxos, na Pequena Rússia, eram um incomodo considerável. O Patriarca de Constantinopla, a cuja jurisdição eles pertenciam, não conseguia exercer um efetivo controle na Polônia; seus Bispos não eram indicados pela Igreja mas pelo rei católico romano da Polônia e eram, as vezes, cortesãos inteiramente não dotados de qualidades espirituais e incapazes de prover qualquer liderança inspiradora. Existia no entanto um laicado vigoroso, liderados por numerosos nobres ortodoxos enérgicos, e em muitas cidades existiam poderosas associações leigas conhecidas como Irmandades (Bratstva).

 

Mais de uma vez as autoridades católico-romanas na Polônia tentaram fazer os Ortodoxos se submeterem ao Papa. Com a chegada da Sociedade de Jesus em 1564 a pressão sobre os Ortodoxos aumentou. Os jesuítas começaram por negociar secretamente com os Bispos Ortodoxos, que estavam em sua maior parte desejosos de colaborar (devemos lembrar que eles eram nomeados por um monarca católico-romano). No tempo oportuno, assim esperavam os Jesuítas, a hierarquia Ortodoxa completa da Polônia concordaria em submeter-se em bloco ao Papa, e a "união" poderia ser proclamada em público como um fato consumado antes que qualquer um pudesse levantar objeções: por isso a necessidade de ocultação nos estágios iniciais da operação. Mas os fatos não ocorreram inteiramente de acordo com o plano. Em 1596, um concílio foi convocado em Brest-Litovsk para proclamar a união com Roma, mas a hierarquia estava dividida. Seis de oito Bispos Ortodoxos, incluindo o Metropolita de Kiev, Michael Ragoza, apoiavam a união, mas os outros Bispos, junto com um grande números de delegados dos mosteiros e do clero paroquial queriam permanecer membros da Igreja Ortodoxa. Os dois lados concluíram por excomungar e anatematizar um ao outro.

 

Assim veio a ter existência na Polônia a Igreja Uniata, cujos membros eram conhecidos como "católicos de rito oriental." Os decretos do Concílio de Florença formaram a base da união. Os uniatas reconheceram a supremacia do Papa, mas eram permitidos manter suas práticas tradicionais (tais como clero casado); e eles continuaram como antes a usar a liturgia eslavônica, apesar de que, com o tempo, elementos ocidentais terem sido nela introduzidos. Exteriormente portanto, existia muito pouco para distinguir Ortodoxos de Uniatas e fica-se a pensar o quanto entendiam dessa disputa os camponeses não educados na Pequena Rússia. Muitos deles explicavam a disputa de qualquer modo, dizendo que o Papa tinha então se juntado a Igreja Ortodoxa.

 

As autoridades governamentais reconheceram somente as decisões do partido romano no Concilio de Brest, quando consideraram que a Igreja Ortodoxa da Polônia tinha então deixado de existir legalmente. Aqueles que desejaram continuar Ortodoxos foram severamente perseguidos. Mosteiros e Igrejas foram tomados e dados a Uniatas, contra a vontade dos monges e congregações: "Pessoas católico romanas polonesas as vezes entregavam a Igreja Ortodoxa de seus camponeses a um usuário judeu que podia então cobrar uma taxa para permitir a realização de um batismo ou funeral Ortodoxo" (Benard Pares, A History of Rússia, 3ª edição, Londres, p 167). A história do movimento uniata na Polônia mostra escritos muito tristes. Os jesuítas começaram usando fraudes e terminaram recorrendo à violência. Sem dúvida eles eram homens sinceros que genuinamente desejavam a unidade da Cristandade, mas as táticas que eles empregaram eram mais apropriadas para alargar o fosso que para fecha-lo. A União de Brest azedou as relações entre a Ortodoxia e Roma desde 1596 até os dias presentes.

 

É uma pequena maravilha que os Ortodoxos, quando viram o que estava acontecendo na Polônia, tenham preferido os maometanos aos católicos romanos, como Alexandre Nevsky tinha preferido os tártaros aos cavaleiros teutônicos. Viajando através da Ucrânia por volta de 1650, Paulo de Alepo, sobrinho e arcediago do Patriarca de Antioquia, refletiu a típica atitude Ortodoxa quando ele escreveu em seu diário: "Deus, perpetue o Império Turco! Pois eles nos tomam impostos e não leva em conta a religião, sejam seus dominados cristãos ou nazarenos, judeus ou samaritanos; ao passo que esses amaldiçoados, não satisfeitos com tomar taxas e dízimos de seus súditos cristãos, sujeitam-nos aos inimigos de Cristo,os judeus, que não permitem que eles construam Igrejas ou tenham com eles qualquer padre educado." Aos poloneses ele classifica de "mais vis e maus adoradores de ídolos, por sua crueldade com os Cristãos" (The Travels of Macarius, Ed L.Ridding, London, 1936, pág. 15).

 

A perseguição revigorou a Igreja Ortodoxa da Ucrânia. Apesar de muitos nobres ortodoxos terem se juntado aos Uniatas, as Irmandades mantiveram-se firmes e expandiram suas atividades. Para responder à propaganda jesuítica eles mantinham publicações e editavam livros em defesa da Ortodoxia; para se contrapor à influência das escolas jesuítas eles organizaram suas próprias escolas Ortodoxas . Em 1650 o nível de aprendizado na Pequena Rússia era mais alto que em qualquer outro lugar no mundo ortodoxo; eruditos de Kiev, viajando para Moscou nessa época, fizeram muito para elevar o padrão na Grande Rússia. Nessa renovação do aprendizado, uma parte particularmente brilhante foi feita por Peter Moghila, Metropolita de Kiev de 1633 a 1647. Voltaremos a ele logo adiante.

 

Um dos representantes do Patriarcado de Constantinopla em Brest, em 1596, foi um jovem padre grego chamado Cyril Lukaris (1572 — 1638). Suas experiências na Pequena Rússia inspiraram nele, por toda vida, um ódio pela Igreja de Roma, e quando ele se tornou Patriarca de Constantinopla, ele devotou todas as suas energias a combater toda influência Católico Romana no Império Turco. Foi um infortúnio, apesar de talvez inevitável, que em sua luta contra a "Igreja Papista" (como os gregos a chamam) ele tenha se envolvido profundamente em política. Ele naturalmente procurou por auxílio na Embaixada Protestante em Constantinopla, enquanto seus oponentes jesuítas, por sua parte, usaram os representantes diplomáticos dos poderes católicos romanos. Além de invocar a assistência política dos diplomatas protestantes, Cyril também caiu sob a influência protestante em assuntos de teologia e sua "Confession" (por "confissão" nesse contexto entenda-se um estatuto de fé, uma declaração solene de crenças religiosas), publicada pela primeira vez em Genebra em 1629, é distintivamente Calvinista em muitos dos seus ensinamentos.

 

O reinado de Cyril como Patriarca é uma das mais longas séries de tempestuosas e não edificantes intrigas e forma um dos mais horríveis exemplos do estado do Patriarcado Ecumênico sob os Otomanos. Seis vezes deposto do cargo e seis vezes reinstalado, ele foi finalmente estrangulado por janízaros, e seu corpo jogado no Bósforo. Em última análise existiu algo de profundamente trágico em sua carreira, desde que foi possivelmente o mais brilhante homem a ocupar o cargo de Patriarca desde os dias de São Pothius. Tivesse ele vivido em condições mais felizes, livre de intrigas políticas, seus dons excepcionais poderiam ter tido um muito melhor uso.

 

O Calvinismo de Cyril foi forte e rapidamente repudiado por seus companheiros Ortodoxos, sua Confissão tendo sido condenada por não menos que seis Concílios locais entre 1638 e 1691. Em reação direta a Cyril, dois outros hierarcas ortodoxos, Peter Moghila e Dositheus de Jerusalém, produziram confissões próprias. A Confissão Ortodoxa de Pedro, escrita em 1640, foi baseada indiretamente em manuais católico romanos. Foi aprovada pelo Concílio de Jassy na Romênia (1642), mas só após ter sido revisada por um grego, Meletius Syrigos, que alterou particularmente as passagens relativas à Consagração (que Pedro atribuía somente as palavras da instituição) e ao Purgatório. Mesmo na forma revisada, a Confissão de Moghila é ainda o mais latino documento que em qualquer tempo foi adotado por um Concílio oficial da Igreja Ortodoxa. Dositheus, Patriarca de Jerusalém de 1699 a 1707, também foi fortemente atraido por fontes latinas. Sua Confession, ratificada em 1672 pelo Concílio de Jerusalém, (também conhecido como Concílio de Belém), responde a Confessions de Cyril ponto por ponto com concisão e clareza. As questões principais sobre as quais Cyril e Dositheus divergem são quatro: a questão do livre arbítrio, graça e predestinação; a doutrina da Igreja; o número e a natureza dos sacramentos e a veneração dos ícones. Em suas afirmações sobre a Eucaristia, Dositheus não só adotou o termo latino transubstanciação como adotou a distinção escolástica entre substância e acidente ; e ao defender oração para os mortos ele chegou muito perto da doutrina romana do Purgatório, sem usar a própria palavra Purgatório. No conjunto, no entanto, a Confession de Dositheus é menos latina que a de Moghila e deve certamente ser olhada como um documento de primária importância na história da Teologia Ortodoxa Moderna. Face ao Calvinismo de Lukaris, Dositheus usou as armas que lhe estavam mais a mão — armas latinas (sob circunstâncias a única coisa que ele poderia fazer); mas a fé que ele defendeu com essas armas latinas não foi a Romana, mas a Ortodoxa.

 

Fora da Ucrânia, as relações entre Ortodoxos e Católicos Romanos eram freqüentemente amistosas no século dezessete. Em muitos lugares do Mediterrâneo Oriental, particularmente nas Ilhas Gregas que estavam sob o domínio veneziano, gregos e latinos participaram da louvação do outro: até mesmo lemos sobre procissões católico-romanas do Santo Sacramento que o clero ortodoxo acompanhava com força, usando vestimenta completa, com velas e estandartes . Bispos gregos convidavam missionários latinos para pregar para seus rebanhos ou ouvir suas confissões. Mas depois de 1700 esses contatos amistosos se tornaram menos freqüentes e por volta de 1750 tinham cessado, em sua maior parte. Em 1724 uma grande parcela do Patriarcado Ortodoxo de Constantinopla submeteu-se a Roma; depois disso as autoridades Ortodoxas, temendo que o mesmo pudesse acontecer em algum outro lugar do Império Turco, tomaram uma posição muito mais estrita em suas relações com os católico-romanos. O clímax em sentimentos anti-romanos veio em 1755, quando os Patriarcas de Constantinopla, Alexandria e Jerusalém declararam ser o batismo romano inteiramente inválido e exigiram que todos os convertidos à Ortodoxia fossem batizados de novo. "Os batismos de heréticos tem que ser rejeitados e abominados," o decreto estabeleceu; eles são "águas que não podem ter proveito (....) nem dar nenhuma santificação a quem as recebeu, tem nenhum valor para a lavagem dos pecados." Essa medida permaneceu em vigor no mundo grego até o final do século dezenove, mas não se entendeu para a Igreja da Rússia; os russos batizaram os convertidos do Catolicismo Romano entre 1441 e 1667, mas desde 1667 eles normalmente não mais procederam assim.

 

A Ortodoxia do século dezessete entrou em contato não só com os Católicos Romanos, Luteranos e Calvinistas mas também com a Igreja da Inglaterra. Cyril Lukakis correspondeu-se com o Arcebispo e Abade de Canterbury e um futuro Patriarca de Alexandria, Metrofanes Kristopoulos, estudou em Oxford de 1617 a 1624; Kristopoulos é o autor de uma Confession, de tom levemente protestante mas largamente utilizada na Igreja Ortodoxa. Por volta de 1694 existiu até mesmo um plano de se estabelecer um "colégio grego" em Gloucester Hall, Oxford (hoje em dia Worcester College), e cerca de dez estudantes gregos foram de fato enviados para Oxford, mas o plano falhou por falta de dinheiro e os gregos acharam a comida e os alojamentos tão pobres que muitos foram embora. De 1716 a 1725 uma correspondência muito interessante foi mantida entre os Ortodoxos e os Não- Jurados (um grupo de Anglicanos que se separaram do corpo principal da Igreja da Inglaterra em 1688, preferindo agir assim do que jurar aliança ao usurpador Guilherme de Orange). Os Não Jurados aproximaram-se tanto dos quatro Patriarcas Orientais quanto da Igreja da Rússia na esperança de estabelecer comunhão com a Ortodoxia. Mas os Não-Jurados não puderam aceitar o ensinamento Ortodoxo a respeito da presença de Cristo na Eucaristia; eles também se mostraram perturbados pela veneração mostrada pelos Ortodoxos para com a Mãe de Deus, os Santos, e os Santos Ícones . E a correspondência foi suspensa sem que nenhum acordo fosse alcançado.

 

Olhando-se para trás, para o trabalho de Dositeu e Moghila, nos Concílios de Jassy e Jerusalém, e para a correspondência com os Não-Jurados, surpreende-se pelas limitações da teologia grega nesse período: não se encontra a tradição ortodoxa em sua totalidade. No entanto, os Concílios do século dezessete fizeram uma contribuição permanente e construtiva à Ortodoxia. As controvérsias da reforma levantaram problemas que nem os Concílios Ecumênicos nem a Igreja do Império Bizantino mais tardio tinham sido chamados a enfrentar: no século dezessete os Ortodoxos foram forçados a pensar mais cuidadosamente sobre os Sacramentos e acerca da natureza e autoridade da Igreja. Foi importante para a Ortodoxia expressar sua mentalidade acerca desses tópicos e definir sua posição em relação aos novos ensinamentos que haviam surgido no ocidente; essa foi a tarefa que foi imposta aos Concílios do século dezessete. Esses Concílios foram locais, mas a essência de suas decisões foi aceita pela Igreja Ortodoxa como um todo. Os Concílios do século dezessete, como os Concílios hesicastas de trezentos anos antes, mostram que o trabalho teológico criativo não chegou ao fim na Igreja Ortodoxa depois do período dos Concílios Ecumênicos. Existem doutrinas importantes não definidas nos Concílios Gerais, que todo Ortodoxo é obrigado a aceitar como uma parte integrante de sua fé.

 

Muitos ocidentais aprendem sobre Ortodoxia estudando o período Bizantino ou através do pensamento religioso russo nos últimos cem anos. Em ambos os casos eles tendem a pular o século dezessete e a sub avaliar sua influência sobre a história da Ortodoxia.

 

Por todo o período do Império Turco as tradições do hesicasmo permaneceram vivas, particularmente no Monte Atos; e no final do século dezoito houve um importante renascimento espiritual cujos efeitos podem ser sentidos até hoje. No centro desse renascimento esteve um monge no Monte Atos, São Nicodemus da Montanha Santa (o "Hagiorita," 1748-1809), chamado mui justamente de "uma enciclopédia do aprendizado atonita de seu tempo" com o auxilio de São Macários (Notaras), Metropolita de Corinto, Nicodemus compilou uma antologia de escritos espirituais chamada Philocalia. Publicada em Veneza em 1782, é um trabalho gigantesco de 1207 páginas fólio, contendo autores do quarto ao décimo quinto século e tratando principalmente com a teoria e a prática da oração, especialmente a oração de Jesus. Essa publicação provou-se ter sido uma das publicações mais influentes da história da Ortodoxia e foi amplamente lida não só por monges, mas também por muitas outras pessoas, sendo lido até a presente data. Traduzida para o eslavônio e russo ela foi um instrumento que demonstrou a grande espiritualidade russa do século dezenove.

 

Nicodemus era conservador, mas não estreito ou obscurantista. Ele aproximou-se de obras de devoção católico-romanas adaptando para o Ortodoxo (livros de Lorenzo de Scupoli e Inácio de Loyola). Ele e seu círculo eram fortes advogados de comunhão freqüente, apesar de que naquela época muitos Ortodoxos comungarem só poucas vezes por ano. Na verdade, Nicodemus era vigorosamente atacado nesse assunto, mas um Concílio em 1879, em Constantinopla, confirmou seu ensinamento. Movimentos que estão tentando introduzir comunhão semanal na Grécia de hoje apelam para a grande autoridade de Nicodemus.

 

É dito com muita razão que se há muito a lamentar sobre o estado da Ortodoxia durante o período turco, também existiu muito para se admirar. Apesar de inumeráveis desencorajamentos, a Igreja Ortodoxa sobre o domínio Otomano, nunca perdeu sua essência. Existiram de fato muitos casos de apostasia para o Islam, mas na Europa, não foram tão freqüentes quanto era a expectativa. A Ortodoxia nesses séculos teve muitos mártires que são honrados no calendário da Igreja com o título especial de Novos Mártires; muitos deles foram gregos que tornaram-se maometanos e depois, arrependidos, retornaram ao Cristianismo — pelo que a penalidade era a morte. A corrupção na alta administração da Igreja, chocante como foi, tinha muito pouco efeito sobre a vida diária do cristão comum, que ainda era capaz de comparecer, todo Domingo, em sua Igreja paroquial. Mais do que qualquer outra coisa, foi a Sagrada Liturgia que manteve a Ortodoxia viva naqueles dias negros.

15. Moscou e Petersburgo

 

"O sentimento da presença de Deus — do sobrenatural —

parece-me penetrado na vida russa

mais completamente que em qualquer outra nação ocidental".

 

(H.P.Lindon, Canon of Saint Paul’s,

depois de uma visita à Rússia, em 1867).

 

Moscou, "a terceira Roma."

 

A pós a tomada de Constantinopla em 1453, só havia uma nação capaz de assumir a liderança no Cristianismo Oriental. A maior parte da Bulgária, da Sérvia e da Romênia já havia sido conquista pelos turcos, enquanto o resto havia sido absorvido muito antes. Só a Rússia sozinha remanesceu. Para os russos não pareceu coincidência que no mesmo momento que o Império Bizantino chegava ao fim, eles russos estavam finalmente limpando os últimos vestígios da suserania tártara: parecia que Deus estava lhes dando liberdade porque os tinha escolhido para serem os sucessores de Bizâncio.

 

Ao mesmo tempo em que a terra russa, a Igreja russa ganhou liberdade, mais por circunstâncias do que por um desígnio deliberado. Até então o Patriarca de Constantinopla designava o cabeça da Igreja Russa, o Metropolita. No Conselho de Florença, o Metropolita era um grego, Isidoro. Isidoro, que apoiava a união com Roma, retorna a Moscou em 1441 e proclama os decretos de Florença, mas não encontra nenhum apoio dos russos Foi aprisionado pelo Grão Duque, mas depois de algum tempo foi permitido que ele escapasse e voltasse para a Itália. A cadeira mais importante ficou então vazia, mas os russos não podiam pedir ao Patriarca um novo Metropolita, porque até 1453 a Igreja Oficial de Constantinopla continuava a aceitar a União Florentina. Relutantes em tomar uma atitude própria, os russos postergaram a solução por muitos anos . Eventualmente, em 1448 um Concílio de Bispos russos procedeu à eleição de um Metropolita sem nenhuma interferência de Constantinopla. A comunhão entre o Patriarcado e a Rússia foi restaurada, mas a Rússia continuou a indicar o chefe de sua própria hierarquia. Daí para a frente a Igreja Russa foi autocéfala.

 

A idéia de Moscou como sucessora de Bizâncio foi ajudada por um casamento. Em 1472, Ivan III, o "Grande" (reinou 1462 — 1505) casou-se com Sofia, sobrinha do último Imperador de Bizâncio. O casamento serviu para estabelecer uma ligação dinástica com Bizâncio. O Grão Duque de Moscou começou a assumir os títulos bizantinos de "autocrata" e "Tsar" (uma adaptação do romano "César") e a usar a águia de duas cabeças de Bizâncio como seu emblema de estado. Começou-se a pensar em Moscou como a "Terceira Roma." A primeira Roma (assim argumentaram) tinha caído para os bárbaros e então entrou em heresia. A segunda Roma, Constantinopla, por sua vez havia caído em heresia no Concílio de Florença e como punição foi tomada pelos turcos. Moscou então sucedeu Constantinopla como a Terceira Roma, o centro da Cristandade Ortodoxa. O monge Filoteu de Pskov colocou essa sua linha de argumento em uma famosa carta escrita em 1510 para o Tsar Basílio III:

 

Eu gostaria de acrescentar algumas palavras sobre o Império Ortodoxo de nosso dirigente: ele é na terra o único Imperador (Tsar) dos Cristãos, o líder da Igreja Apostólica que não está mais em Roma ou em Constantinopla, mas na abençoada cidade de Moscou. Só ela brilha no mundo inteiro mais do que sol .... Todos os impérios Cristãos caíram e em seu lugar está sozinho o Império de nosso dirigente, de acordo com os livros proféticos. Duas Romas caíram, mas a terceira permanece e uma quarta não existirá! (citado em Bayntes and Moss, Bysantium: an Introduction, pág.385)

 

Essa idéia de ser Moscou a "Terceira Roma" tem um certo sentido quando aplicada ao Tsar: o imperador de Bizâncio anteriormente agiu como campeão e protetor da Ortodoxia, e agora o autocrata da Rússia é chamado a executar a mesma tarefa. Mas também poder-se-ia entender de outros modos menos aceitáveis. Se Moscou fosse a "Terceira Roma," não deveria então o Chefe da Igreja Russa estar classificado acima da do Patriarcado de Constantinopla? De fato essa posição nunca foi garantida e a Rússia nunca foi classificada acima da quinta posição entre as Igrejas Ortodoxas, atrás de Jerusalém. O conceito de "Terceira Roma" encorajou também um tipo de Messianismo Moscovita e fez com que os russos as vezes pensassem em si próprios como um povo escolhido que não poderia fazer nada de errado e, se fosse tomado esse pensamento, não só pelo lado religioso mas também pelo lado político, ele poderia ser usado para promover o término do imperialismo secular russo.

 

Agora que o sonho pelo qual São Sérgio trabalhou — a liberação da Rússia do domínio dos tártaros — tinha se tornado uma realidade, uma triste divisão ocorreu entre seus descendentes espirituais. São Sérgio tinha unido o lado social e o lado místico à monarquia, mas sob seus sucessores esses dois aspectos tornaram-se separados. A separação mostrou-se abertamente pela primeira vez num Concílio da Igreja, em 1503. Quando esse Concílio chegava ao seu final, São Nilo de Sora (Nil Sorsky, 1433? — 1508), um monge de um eremitério nas florestas além do Volga, levantou-se para falar e lançou um ataque sobre propriedade de terras pelos mosteiros (cerca de um terço da terra na Rússia pertencia a mosteiros nesse tempo). São José, Abade de Volokalamsk (1439 — 1515) respondeu em defesa da propriedade das terras pelos mosteiros. A maioria do Concílio apoiou José, mas existiram outros na Igreja Russa que concordaram com Nilo — principalmente eremitas que como ele viviam além do Volga. O partido de José ficou conhecido como os possessores, Nilo e os eremitas trans-volga como não-possessores. Durante os vinte anos seguintes houve uma tensão considerável entre os dois grupos. Finalmente os não-possessores, em 1525 — 1526, atacaram o Tsar Basílio III por divorciar-se injustamente de sua mulher (a Ortodoxia concede divórcio, mas só por certas razões). O Tsar então aprisionou o líder dos não-possessores e fechou os eremitérios trans-volga. A tradição de São Nilo tornou-se subterrânea e, apesar de nunca ter desaparecido completamente, sua influência na Igreja russa tornou-se muito restrita. Por muito tempo os possessores reinaram supremos.

 

Por traz da propriedade monástica estavam duas concepções da vida monástica e finalmente dois pontos de vista diferentes da relação da Igreja com o mundo.

 

Os possessores enfatizavam as obrigações sociais da monarquia. Faz parte do mundo dos monges cuidar dos doentes e dos pobres, mostrar hospitalidade e ensinar. Para fazer essas coisas com eficiência os mosteiros precisavam de dinheiro e por isso precisavam possuir terras. Monges (assim eles argumentavam) não usam suas riquezas para si próprios, mas zelam por elas para benefício de outros. Existia um dito entre os seguidores de José, "as riquezas da Igreja são as riquezas dos pobres."

 

Os não-possessores argumentavam de outro lado, que esmola era obrigação dos leigos, enquanto que a tarefa principal do monge é ajudar aos outros pela oração por eles e dando-lhes exemplos. Para fazer isso adequadamente um monge deve ser e estar desprendido desse mundo e só aqueles que fazem votos de completa pobreza podem atingir o verdadeiro desapego. Monges que são senhores de terras não podem evitar se envolver com as ansiedades seculares e porque eles se tornam absorvidos com preocupações mundanas, eles agem e pensam de maneira mundana. Nas palavras do monge Vassiam (príncipe Patrikiev), um discípulo de Nilo:

 

Aonde nas tradições do Evangelho, Apóstolos e Padres e Monges são ordenados a adquirir vilas populosas e escravizar camponeses para a irmandade?... Nós olhamos para as mãos dos ricos, contentes com o seu apego, tentem bajulando-os tomar-lhes alguma pequena vila ... Nós enganamos, roubamos e vendemos Cristãos, nossos irmãos. Nós os torturamos com açoites como bestas feras (citado em B. Pares, A Hystory of Rússia, 3ª edição, p.39)

 

O protesto de Vassiam contra torturas e açoites traz-nos para um segundo assunto sobre o qual os dois lados divergiam: o tratamento dos heréticos. José mantinha a visão não universal do Cristianismo de seu tempo: se os heréticos fossem recalcitrantes, a Igreja deveria chamar o braço civil e valer-se de prisão, tortura e, se necessário, fogo. Mas Nilo condenava toda forma de coerção e violência contra os heréticos. Deve-se somente lembrar de como os Protestantes e Católicos Romanos tratavam-se uns aos outros na Europa Ocidental durante a Reforma, para constatar quão excepcional Nilo era em sua tolerância e respeito pela liberdade humana.

 

A questão dos heréticos por sua vez envolveu o problema mais amplo da relação entre Igreja e Estado. Nilo encarava a heresia como uma questão espiritual, para ser resolvida pela Igreja sem a intervenção do Estado; José invocava o auxílio das autoridades seculares. No geral, Nilo traçava mais do que José uma linha claramente divisória entre as coisas de César e as coisas de Deus. Os possessores eram grandes apoiadores do ideal de Moscou como "Terceira Roma"; acreditando em uma forte aliança entre Igreja e Estado, eles tinham forte atuação na política, como Sérgio tinha feito, mas talvez eles fossem menos cuidadosos que Sérgio em guardar e não permitir que ela se tornasse serva do Estado. Os não-possessores por sua parte tinham um sentido mais apurado dos testemunhos proféticos e não-mundanos da monarquia.Os partidários de José estavam em perigo de identificar o Reino de Deus com um reino desse mundo; Nilo viu que a Igreja na terra deve ser sempre uma Igreja em peregrinação. Enquanto José e seus partidários eram grandes patriotas e nacionalistas, os não-possessores pensavam mais na universalidade e catolicidade da Igreja.

 

Mas as divergência entre os dois lados não terminaram por aí: eles também tinham idéias diferentes sobre piedade Cristã e oração. José enfatizava a posição de regras e disciplina; Nilo a relação interna e pessoal ente a alma e Deus. José valorizava o lugar da beleza na adoração; Nilo temia que a beleza pudesse se transformar num ídolo: o monge (assim Nilo mantinha) não é a dedicação somente à pobreza exterior, mas também a um absoluto auto-desnudamento, e ele ser cuidadoso para que a devoção a belos ícones ou a música da Igreja não venha a ficar entre ele e Deus (nessa suspeição sobre a beleza, Nilo apresenta um puritanismo — quase um Iconoclasmo — muito raro na espiritualidade russa). José dava importância à adoração corporativa e à oração litúrgica:

 

Pode-se orar no próprio quarto, mas nunca se orará como se ora na Igreja ... onde o canto de muitas vozes sobe único para Deus, onde todos tem um pensamento e uma voz na unidade do amor .... Nas alturas o Serafim proclama o Trisagion, aqui abaixo a multidão humana eleva o mesmo hino. Céu e terra mantêm o festival juntos, uns em agradecimento, uns em felicidade, uns em jubilo. (citado em J. Meyendorff, "Une Controverse Sur lê Role Social de L’Eglise. La Querelle Dês Bien: Eclesiastiques Au XII e Siècle en Russie," in the Periodical Irenikon, vol XXIX (1956), p.29).

 

Nilo por sua vez estava principalmente interessado não na oração litúrgica, mas na oração mística: antes de se fixar em Sora ele tinha vivido como monge no Monte Atos e conheceu a tradição hesicasta bizantina em primeira mão.

 

A Igreja russa corretamente viu coisas boas nos ensinamentos tanto de José quanto de Nilo, e canonizou a ambos. Cada um herdou uma parte da tradição de São Sérgio, mas não mais do que uma parte: a Rússia precisava tanto do monasticismo de José quanto o da forma trans-volguiana, pois um suplementava o outro. Na verdade foi triste que os dois lados tivessem entrado em conflito e que a tradição de Nilo tenha sido largamente suprimida: sem os não-possessores a vida espiritual da Igreja Russa tornou-se unilateral e desbalanceada. A integração próxima que os partidários de José mantiveram com o Estado, seu nacionalismo russo, sua devoção às formas exteriores de adoração — essas coisas conduziram a problemas no século seguinte.

 

Um dos participantes mais interessantes na disputa dos possessores e não-possessores foi São Máximo, o Grego (1470? — 1556), uma "figura ponte" cuja longa vida abraça os três mundos da Renascença na Itália, Monte Athos e Moscou. Grego de nascimento, ele passou os anos de adulto jovem em Florença e Veneza, como um amigo dos eruditos humanísticos tais como Pico Della Mirandola; também caiu sobre a influência de Savanarola e por dois anos foi Dominicano. Retornando à Grécia em 1504, ele tornou-se monge do Monte Athos, em 1517 foi convidado para ir à Rússia, pelo Tsar, para traduzir obras gregas para o eslavônio e para corrigir os livros de Ofícios russos que estavam desfigurados por inúmeros erros. Como Nilo, ele era devotado aos ideais hesicastas e, na sua chegada à Rússia, ele se ligou aos não-possessores. E sofreu com o resto, sendo feito prisioneiro por vinte e seis anos, de 1525 a 1551. Ele foi atacado com particular severidade pelas modificações que ele propôs nos livros de Ofícios e o trabalho de revisão foi interrompido, ficando inacabado. Seus grandes dons de aprendizado, os quais os russos poderiam ter aproveitado e muitos, foram grandemente perdidos na prisão. Ele era tão rígido quanto Nilo por auto-desnudamento e pobreza espiritual: "se você de fato ama o Cristo crucificado," ele escreveu ."..seja um estranho, desconhecido, sem pátria, sem nome, silencioso perante seus parentes, seus conhecidos e seus amigos; distribui tudo que tiveres aos pobres, sacrifica todos seus velhos hábitos e toda tua vontade própria." (citado por E. Denissoff, Máxime lê Grec et l’occident, Paris 1943, pp. 275-276).

 

Apesar da vitória dos possessores ter significado uma estreita aliança entre Igreja e Estado, a Igreja não perdeu toda sua independência. Quando Ivan, o Terrível estava com seu poder no auge, o Metropolita de Moscou, São Felipe (morto em 1569), ousou protestar abertamente contra o Tsar por seus derramamentos de sangue e injustiças e repreendeu-o cara a cara durante a celebração pública da Liturgia. Ivan o pôs na prisão e depois fez com que fosse estrangulado. Outro que criticou agudamente Ivan foi São Basílio, o Bendito, o "louco em Cristo" (morreu em 1552). Louco por Cristo é uma forma de santidade encontrada em Bizâncio, mais particularmente proeminente na Rússia medieval: o "louco" carrega o ideal de auto-desnudamento e humilhação para o extremo, renunciando a todos os dons intelectuais, toda forma de sabedoria terrena, e colocando voluntariamente sobre si a Cruz. Esses loucos freqüentemente desempenhavam um valioso papel social: simplesmente porque eles eram loucos, podiam criticar aqueles que estavam no poder com uma franqueza que ninguém mais ousaria empregar. Assim foi com Basílio, a "consciência viva" do Tsar. Ivan prestou atenção à perspicaz censura do louco, e longe de puni-lo, tratou-o com remarcada honra.

 

Em 1589, com o consentimento do Patriarca de Constantinopla, o chefe da Igreja russa foi elevado do nível de Metropolita para o de Patriarca. Foi, de certo ponto de vista, um triunfo para o ideal de Moscou: "Terceira Roma." Mas foi um triunfo limitado, pois o Patriarca de Moscou não tomou o primeiro lugar no mundo Ortodoxo, mas o quinto, depois de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém (mas superior ao Patriarcado mais antigo da Sérvia). Com a mudança das coisas, o Patriarcado de Moscou iria durar um pouco mais de um século.

 

16. O Cisma dos Velhos Crentes

 

O século dezessete na Rússia abriu com um período de confusão e desastre, conhecido como Tempo de Turbulência, quando a terra foi dividida contra si mesmo e caiu vítima de inimigos externos. Depois de 1613 a Rússia teve uma súbita recuperação e os quarenta anos seguintes foram de reconstrução e de reforma em muitas áreas da vida da nação. Nesse trabalho de reconstrução a Igreja desempenhou um papel muito importante. O movimento de reforma na Igreja foi liderado pelo Abade Dionísio do Mosteiro Trindade-- São Sérgio e por Filaret, Patriarca de Moscou de 1619 a 1633 (ele era o pai do Tsar); depois de 1633 a liderança passou para um grupo de clero paroquial casado e, em particular, para os Arciprestes John Neronov e Avvakum Petronich. O trabalho de corrigir livros de Ofícios, começado no século anterior por Máximo, o Grego, foi então assumido cautelosamente; uma Imprensa Patriarcal foi montada em Moscou e livros de Igreja mais acurados foram editados, apesar das autoridades não terem querido se aventurar em fazer muitas alterações drásticas. No nível paroquial, os reformadores fizeram tudo o que podiam para elevar os padrões morais tanto entre o clero quanto entre os leigos. Eles lutaram contra a bebedeiras; eles insistiram que os jejuns fossem observados; eles pediram que a Liturgia e outros Ofícios nas Igrejas paroquiais fossem cantados com reverência e sem omissões; e encorajaram oração freqüente.

 

O grupo reformador representava o que havia de melhor na tradição de São José de Volokalmsk. Como José, eles acreditavam em autoridade e disciplina e viam a vida Cristã em termos de regras ascéticas e oração litúrgica. Eles esperavam que não só monges, mas também padres paroquiais e leigos — marido, mulher, crianças — mantivessem as quaresmas e passassem longos períodos em oração cada dia, fosse na Igreja ou diante dos ícones em suas casas. Aqueles que apreciassem a severidade e autodisciplina do círculo reformador deveriam ler a vívida e extraordinária autobiografia do arcipreste Avvakum (1620 — 1682). Em uma de suas cartas Avvacum recorda como em cada anoitecer ele e sua família recitavam as orações usuais, apagando a seguir as luzes, recitando-se então 600 orações a Jesus e 100 para a Mãe de Deus, acompanhadas por 300 prostrações (a cada prostração ele tocaria o chão com sua testa, e levantar-se-ia outra vez para a posição de pé). Sua mulher, quando com criança (como usualmente estava), recitava só 400 orações com 200 prostrações. Isso dá alguma idéia sobre os exatos padrões observados pelos devotos russos no século dezessete.

 

O programa dos reformadores fazia poucas concessões à fraqueza humana e era muito ambicioso para ser completamente realizado. Mesmo assim, Moscou por volta de 1650 foi bem longe justificando assim o título de "Santa Rússia." Ortodoxos do Império Turco que visitavam Moscou ficavam pasmos (e freqüentemente desmaiavam) pela austeridade do jejum, pela duração longa e magnificência dos Ofícios. A nação inteira parecia viver como "uma vasta casa religiosa" (N. Zernov, Moscou, The Third Rome, pág. 51). O arcebispo Paulo de Aleppo, que ficou na Rússia de 1654 a 1656, verificou que os banquetes na corte eram acompanhados não por música, mas pela leitura da vida de Santos, como nas refeições de mosteiros. Ofícios durando sete horas ou mais eram assistidas pelo Tsar e toda corte: "Então, o que deveríamos dizer dessas obrigações severas bastante para tornar o cabelo de crianças cinza, e que são estritamente observadas pelo Imperador, Patriarcas, nobres, princesas e senhoras ficando em pé da manhã ao anoitecer? Quem acreditaria que eles iriam seguir os devotos anacoretas do deserto?" ("The Travels of Macarius," em N. Palmer, The Patriarc and the Tsar, Londo, 1873, vol II, pág. 107). As crianças não eram excluídas dessas rigorosas observâncias: "O que nos surpreendeu mais foi ver meninos e crianças pequenas de cabeças descoberta e sem movimentos, sem trair o menor gesto de impaciência" (The Travels of Macarius, Editada por Riding, pág. 68). Paulo achou a severidade e o rigor russo não inteiramente de acordo com seu gosto. Ele reclamou que eles não permitiam "jovialidades, risadas, gracejos," nem bebedeiras, nem "comer ópio" nem fumar: "Pelo crime especial de beber tabaco eles até mesmo condenavam alguém à morte" (Ibid, pág. 21). É um quadro impressionante o que Paulo e outros visitantes pintaram da Rússia, mas há talvez muita ênfase nas exterioridades. Um grego marcou em seu retorno para casa que a religião moscovita consistia grandemente em toque de sinos.

 

Em 1652-1653 uma querela fatal começou entre o grupo reformador e o novo Patriarca, Nicon (1605-1681). Camponês por origem, Nicon foi provavelmente o mais brilhante e dotado homem que tornou-se chefe da Igreja russa em qualquer tempo; mas ele sofria de um temperamento dominante e autoritário. Nicon era um forte admirador das coisas gregas: "Eu sou russo e filho de uma russa," costumava dizer, "mas minha fé e religião são gregas" (Ibid, pág. 37). Ele exigiu que as práticas russas deveriam ser conforme os padrões dos quatro antigos Patriarcados e que os livros de Ofícios russos deveriam ser alterados em qualquer ponto que divergissem dos gregos.

 

Essa política forçou a oposição daqueles que pertenciam à tradição de José. Eles encaravam Moscou como a "Terceira Roma" e a Rússia como fortaleza e modelo de Ortodoxia; e agora Nicon dizia a eles que em todos os aspectos eles deveria copiar os gregos. Mas a Rússia não era uma Igreja independente, um membro completamente adulto da família Ortodoxa, intitulada para manter seus próprios costumes e tradições nacionais? Os russos certamente respeitavam a memória da Igreja Mãe de Bizâncio de quem tinham recebido a fé, mas eles não sentiam e mesma reverência pelos gregos contemporâneos. Eles se lembravam da "apostasia" dos gregos em Florença e eles conheciam alguma coisa da corrupção e desordem do Patriarcado de Constantinopla sob o domínio turco.

 

Tivesse Nicon procedido com tato, tudo poderia ter corrido bem: o Patriarca Filaret já tinha feito algumas correções nos livros de Ofícios sem levantar oposição. Nicon, no entanto, não era homem gentil e com tato e pressionou com seu programa, sem considerar os sentimentos dos outros. Em particular, ele insistiu que o sinal da cruz, na época em questão, feito pelos russos com dois dedos, fosse feito da maneira grega com três dedos. Isso pode ser visto como um assunto trivial, mas deve ser lembrado quão grande importância Ortodoxos em geral e os russos em particular sempre deram a ações rituais, aos gestos simbólicos pelos quais a crença interna de um Cristão, constitui uma troca de fé. A divergência no sinal da cruz levantou concretamente a questão completa de Ortodoxia russa. A fórmula grega com três dedos era mais recente que a forma russa com dois: porque deveriam os russos, que permaneceram leais aos modos antigos, serem forçados a aceitar uma inovação grega "moderna"?

 

Neronov e Avvakum, junto com muitos outros clérigos, monges e leigos, defenderam as velhas práticas russas e se recusaram a aceitar as modificações de Nicon ou usar os novos livros de Oficio que ele editara. Nicon não era homem de tolerar qualquer discordância, e ele exilou e prendeu seus oponentes: em alguns casos eles foram até mesmo mortos. No entanto, apesar da perseguição, a oposição continuou. Apesar de Neronov finalmente submeter-se, Avvakum recusou-se a desistir e, após dez anos de exílio, finalmente foi queimado numa estaca. Seus apoiadores o viram como um santo e mártir pela fé. Aqueles que como Avvakum desafiaram a Igreja oficial com seus Niconicos livros de Oficio formaram uma seita separada (raskol) conhecida como Velhos Crentes (seria mais exato de chamá-los de Velhos Ritualistas). Assim, levantou-se na Rússia do século dezessete um movimento de dissidência; mas se nós compararmos essa com a dissidência inglesa do mesmo período, nós notaremos duas grandes diferenças. Primeiro, os Velhos Crentes — os dissidentes russos — divergiram da Igreja Oficial só no ritual, não na doutrina; segundo, enquanto a dissidência inglesa foi radical — um protesto contra a Igreja oficial por não levar a reforma suficientemente longe — a dissidência russa foi o protesto dos conservadores contra a Igreja oficial que a seus olhos tinha levado as reformas muito longe.

 

O cisma dos Velhos Crentes continua até os dias presentes. Antes de 1917 seu número oficialmente estava assentado em dois milhões, mas realmente pode ter sido até cinco vezes maior. Eles eram divididos em dois grupos importantes, os popovtsy que mantiveram o presbiterado e que, desde 1846, possuem sua própria sucessão de bispos e os Bezpopovtsy, que não têm padres.

 

Há muito a se admirar na Raskolniki. Eles tinham em suas fileiras os melhores elementos entre o clero paroquial e os leigos no século dezessete na Rússia. Historiadores do passado cometeram uma grande injustiça considerando a disputa toda como meramente uma querela sobre a posição de um dedo, sobre textos, sílabas e letras falsas. A verdadeira causa do cisma esta em outras coisas e estas sim muito mais profundas. Os Velhos Crentes lutaram pelo sinal da Cruz com dois dedos, pelos velhos textos e costumes, não simplesmente como um fim em si mesmo, mas por uma questão de princípio que estava envolvida: eles viam essas coisas como dando corpo à antiga tradição da Igreja, e essa antiga tradição, assim eles sustentavam, tinha sido preservada em sua total pureza pela Rússia e pela Rússia sozinha. Podemos dizer que eles estavam completamente errados? O sinal da Cruz com dois dedos era de fato mais antigo que os de três dedos. Foram os gregos os inovadores e os russos que se mantiveram leais aos velhos costumes. Porque os russos deveriam então ser forçados a adotar a prática grega moderna? Certamente, no calor da controvérsia, os Velhos Crentes levaram seus casos a extremos e sua legítima reverência pela "Santa Rússia" degenerou num nacionalismo fanático; mas Nicon também foi muito longe com sua não crítica admiração por todas as coisas gregas.

 

"Não temos razão para nos envergonharmos da nossa Raskol" escreveu Khomiakov. "... é o valor de um grande povo, e poderia inspirar respeito num estranho; mas está longe de abarcar toda riqueza do pensamento russo" (ver A.Gratieux, A. S. Khoniakov et le Mouvement Slavophile, Paris, 1939, vol III, pág. 165). Ela não abarca a riqueza do pensamento russo porque ela representa só um simples aspecto do Cristianismo russo, a tradição dos possessores. Os defeitos dos Velhos Crentes eram os defeitos dos servidores de José aumentados: um nacionalismo muito estreito e uma ênfase muito grande nas exterioridades da adoração. Nicon, também apesar de seu helenismo, é no fim um seguidor de José: ele determinou uma absoluta uniformidade das exterioridades da adoração e como os possessores ele livremente invocou o auxílio das forças civis para suprimir todos os oponentes religiosos. Mais do que qualquer outra coisa, foi sua prontidão para valer-se da perseguição que tornou o cisma definitivo. Se o desenvolvimento da vida na Igreja entre 1550 e 1560, na Rússia, tivesse sido menos unilateral, talvez uma separação duradoura teria sido evitada. Se os homens tivessem pensado mais (como Nilo fez) em tolerância e liberdade ao em vez de usar perseguição, então uma reconciliação poderia ter ocorrido; e se eles atentassem mais para oração mística, eles poderiam ter argumentado menos acidamente sobre ritual. Por trás da divisão do século dezessete esteve as disputas do século dezesseis.

 

Bem como estabelecer práticas gregas na Rússia, Nicon perseguiu um segundo objetivo: fazer a Igreja ser suprema sobre o Estado. No passado, a teoria de relações governamentais entre a Igreja e o Estado tinha sido a mesma na Rússia como em Bizâncio — uma diarquia ou sinfonia de dois poderes coordenados, sacerdotium e imperium, cada um supremo em sua esfera. Na Catedral de Assunção, no Kremlim existiam colocados dois tronos iguais, um para o Patriarca e um para o Tsar. Na prática a Igreja tinha gozado de uma grande medida de independência e influência nos períodos de Kiev e Mongol. Mas sob os Tsares de Moscou, apesar de na teoria os dois poderes permanecerem o mesmo, na prática o poder civil veio a controlar a Igreja mais e mais; a política dos seguidores de José naturalmente encorajou essa tendência. Nicon tentou reverter essa situação. Não só ele demandou que a autoridade do Patriarca fosse absoluta nas questões da Igreja, como também reclamou o direito de intervenção em assuntos civis e assumiu o título de "Grande Senhor," até então reservado exclusivamente para o Tsar. O Tsar Aléxis tinha um grande respeito por Nicon e no começo submeteu-se a seu controle. "A autoridade do Patriarca é tão grande," escreveu Olearius, visitando Moscou em 1654, "que ele de algum modo divide a soberania com o Grande Duque." (Palmer, The Patriarch and the Tsar, vol II, pág. 407).

 

Mas depois de algum tempo Aléxis começou a se ressentir da influência de Nicon nos assuntos seculares. Em 1658 Nicon, talvez com esperança de restaurar sua influência, decidiu por um passo muito curioso: ele retirou-se para uma semi-aposentadoria, mas não resignou ao posto de Patriarca. Por oito anos a Igreja Russa permaneceu sem um chefe efetivo até que, por requisição do Tsar, um grande Concílio reuniu-se em Moscou entre 1666 e 1667, sobre a presidência dos Patriarcas de Alexandria e Antioquia. O Concílio decidiu a favor das reformas de Nicon, mas contra sua pessoa. As modificações de Nicon nos livros de Ofícios e acima de tudo sobre o sinal da Cruz foram confirmadas mas Nicon foi deposto e exilado, sendo apontado um novo Patriarca para seu lugar. O Concílio foi assim um triunfo para a política de Nicon de impor práticas gregas à Igreja russa, mas uma derrota para sua tentativa de colocar a Sé do Patriarca acima do Tsar. O Concílio reconfigurou a teoria bizantina de uma harmonia de poderes iguais.

 

Mas as decisões do Concílio de Moscou sobre as relações de Igreja e Estado não permaneceram em vigor por muito tempo. O pêndulo que Nicon puxou muito em uma direção, logo voltou noutra direção com redobrada violência. Pedro, o Grande (reinou de 1682 a 1725) suprimiu o cargo de Patriarca, cujos poderes Nicon havia ambiciosamente lutado para engrandecer.

 

17. O Período Sinódico

 

(1700-1791)

 

Pedro estava determinado a que não existissem mais Nicons. Em 1700, quando o Patriarca Adriano morreu, Pedro não tomou nenhuma medida para apontar seu sucessor e, em 1721, ele fez publicar o célebre Regulamentos Espirituais, que declarava estar o Patriarcado abolido e colocava em seu lugar uma comissão, o Colégio Espiritual do Santo Sínodo. Este era composto por doze membros, três dos quais eram bispos e o resto tirado de chefes de mosteiros ou do clero casado.

 

A constituição do Sínodo não estava baseada na Lei Canônica Ortodoxa, mas copiada dos Sínodos eclesiásticos protestantes da Alemanha. Seus membros não eram escolhidos pela Igreja mas nomeados pelo Imperador e o Imperador que nomeava podia também, à sua vontade, demiti-los. Enquanto um Patriarca, tendo o cargo pela vida toda, poderia talvez desafiar o Tsar, a um membro do Sínodo não era permitido nenhum ato de heroísmo, pois ele seria simplesmente retirado. O Imperador não era chamado "Chefe da Igreja," mas havia se lhe dado o título de "Juiz Supremo do Colégio Espiritual." Reuniões do Sínodo não eram assistidas pelo Imperador em pessoa, mas por um oficial do governo, o Procurador Chefe. O Procurador, apesar de se sentar numa mesa separada e não tomar parte nas discussões, na prática tinha considerável poder sobre os assuntos da Igreja, e era de fato, ainda que não de nome, um "Ministro da Religião."

 

Os Regulamentos Espirituais viam a Igreja não como uma instituição divina, mas como um departamento de Estado. Baseado principalmente em proposições seculares ele fazia poucas concessões para aquilo que era chamado pela reforma inglesa de "Direitos de Coroa do Redentor." Isso era verdade não só com relação à alta administração da Igreja, mas também para muitas de suas outras regras. Um padre que ouvisse, durante a confissão, qualquer esquema que o governo considerasse sedição, era ordenado a violar o segredo do sacramento e suprir a polícia com nomes e detalhes completos. O monasticismo era grosseiramente acusado de ser origem de inumeráveis desordens e perturbações e colocado sob muitas restrições. Novos mosteiros não podiam ser fundados sem permissão especial; monges eram proibidos de viver como eremitas; nenhuma mulher abaixo da idade de cinqüenta anos era autorizada a fazer votos como monja.

 

Existia um propósito deliberado por trás dessas restrições aos mosteiros — centros principais de trabalhos sociais na Rússia nesse tempo. A abolição do Patriarcado era parte de um processo maior: Pedro procurava não só privar a Igreja de liderança, mas também eliminar a participação dela em qualquer trabalho social. Os sucessores de Pedro circunscreveram os trabalhos dos mosteiros ainda mais drasticamente. Elizabeth (reinou de 1741-1762), confiscou a maioria das propriedades monásticas e Catarina II (reinou 1762-1796) suprimiu mais da metade dos mosteiros e nos que permaneceram abertos, ela impôs um estrito limite ao número de monges. O fechamento dos mosteiros foi um desastre nas províncias mais distantes da Rússia, onde eles eram virtualmente os únicos centros culturais e de caridade. Mas apesar do trabalho social da Igreja ter sido gravemente restringido, ele nunca cessou completamente.

 

Os Regulamentos Espirituais deixaram vivas leituras, particularmente em seus comentários sobre comportamento do clero. Fomos informados que padres e diáconos "estando bêbados, pelas ruas, ou o que é pior, ao beber dão vivas ou saúdam a Igreja," bispos estão obrigados a controlar que o clero" não ande de maneira indolente, fazendo som monótono, nem se deitem pelas ruas para dormir, não bebam em tavernas nem se gabem da força de seus chefes" ( The Spiritual Regulations, traduzido por Thomas Consett no The Presente State and Regulations of the Church of Rússia, London, 1729, pp. 157 — 158). Teme-se que apesar dos esforços do movimentos de reforma do século precedente, essas restrições não eram inteiramente injustificadas.

 

Existem também alguns vívidos conselhos para os padres:

 

Um padre não tem ocasião para empurrar ou suspirar como se estivesse remando um barco. Não tem necessidade de bater palmas, nem colocar seus braços para o alto, nem pular ou saltar, nem dar risadinhas ou gargalhar, nem tem qualquer razão para lamentações horrendas com urros. Pois ele não deveria estar nunca tão aflito em espírito, porque essas emoções são todas supérfluas e indecentes, e perturbam a Audiência. (Consett, op citado, pág. 80. O caráter pitoresco de estilo deve-se mais a Consett que ao original russo).

 

Demasiado para os Regulamentos Espirituais.As reformas religiosas de Pedro naturalmente levantaram oposição na Rússia, mas ela foi rudemente silenciada,. Fora da Rússia o respeitável Dositeu fez um vigoroso protesto; mas as Igrejas Ortodoxas sob domínio turco não estavam em posição de intervir efetivamente e em 1723 os quatro antigos Patriarcas aceitaram a abolição do Patriarcado de Moscou e reconheceram a constituição do Santo Sínodo.

 

O sistema de governo da Igreja que Pedro estabeleceu continuou em vigor até 1917. O período sinódico na historia da Igreja russa é usualmente representado como um período de declínio, com a Igreja em completa subserviência ao Estado. Certamente um olhar superficial ao século dezoito serviria para confirmar esse veredicto. Foi um período de uma ocidentalização doentia da arte na Igreja, da música da Igreja e da teologia. Aqueles que se rebelaram contra o seco escolasticismo das academias teológicas voltaram-se não para os ensinamentos de Bizâncio e da velha Rússia, mas para movimentos religiosos ou pseudo- religiosos do ocidente contemporâneo: misticismo protestante, pietismo alemão, maçonaria (os Ortodoxos são terminante proibidos, sob pena de excomunhão, de se tornarem maçons) e para outros movimentos semelhantes. Proeminentes entre o alto clero eram prelados da corte como Ambrosio (Zertiss-Kamensky), Arcebispo de Moscou e Kaluga, que na sua morte em 1771 deixou (entre outras possessões) 252 camisas de fino linho e nove óculos com armação de ouro.

 

Mas esse é um lado só, do quadro do século dezoito. O Santo Sínodo, apesar de sua objetável constituição teórica, na prática governava eficientemente. Homens de Igreja reflexivos estavam alertas para com os defeitos das reformas de Pedro e submetiam-se a elas sem necessariamente concordar. A teologia estava ocidentalizada, mas os padrões de ensino eram altos. Por trás da fachada de ocidentalização, a verdadeira vida da Rússia Ortodoxa continuava sem interrupção Ambrosio Zertiss- Kamensky representou um tipo de bispo russo, mas existiram outros bispos de caráter muito diferente, verdadeiros monges e pastores, tais como Santo Tikon de Zadonsk (1724-1783), bispo de Voronezh grande pregador e escritor fluente. Tikon é particularmente interessante como exemplo de alguém que, como a maioria de seus contemporâneos, foi fortemente influenciado pelo ocidente, mas que ao mesmo tempo permaneceu firmemente enraizado na tradição clássica da espiritualidade Ortodoxa. Ele seguiu muitos exemplos de livros de devoção alemães e anglicanos; suas meditações detalhadas sobre os sofrimentos físicos de Jesus são mais típicos do Catolicismo Romano do que da Ortodoxia; na sua própria vida de oração ele passou por uma experiência similar a da noite escura da alma, como descrito por místicos ocidentais como São João da Cruz. Mas Tikon foi também parecido externamente a Teodósio e Sérgio, a Nilo e aos não-possessores como muitos Santos russos, leigos e monges ao mesmo tempo. Ele tinha especial prazer em ajudar os pobres e ficava mais feliz quando estava conversando com gente simples — camponeses, mendigos e até mesmo criminosos.

 

A segunda parte do período Sinódico, o século dezenove, apesar de ser um período de declínio, foi um tempo de grande renascimento na Igreja russa. Houve um afastamento de movimentos religiosos e pseudo-religiosos do Ocidente contemporâneo e procurou-se de novo as forças espirituais da Ortodoxia. Mano a mano com esse renascimento da vida espiritual ocorreu um novo entusiasmo pelo trabalho missionário. Tanto na teologia como na espiritualidade, a Ortodoxia se libertou de uma imitação eslava do ocidente.

 

Foi no Monte Athos que esse renascimento religioso teve origem. Um jovem russo da Academia Teológica de Kiev, Paissy Velichkovsky (1722-1794), horrorizado pelo tom secular do ensinamento fugiu para o Monte Athos e ali se tornou monge. Em 1763 foi para a Romênia e tornou-se abade do Mosteiro de Niamets, transformando num grande centro espiritual, juntando ao redor dele mais de 500 irmãos. Sob sua direção, a comunidade devotou-se especialmente ao trabalho de traduzir os textos dos padres gregos para o eslavônio. No Monte Athos Paissy tinha aprendido em primeira mão sobre a tradição hesicasta e nutrindo uma forte simpatia por seu contemporâneo Nicodemus. Ele fez uma tradução para o eslavônio da Filocalia, que foi publicada em Moscou em 1793. Paissy punha grande ênfase sobre a prática da oração contínua acima de tudo na oração do coração e a necessidade de obediência a um ancião ou staretz. Ele foi fortemente influenciado por Nilo e os não-possessores, mas não perdeu de vista os bons elementos da forma de monasticismo dos seguidores de José: ele deu mais espaço que Nilo para as orações litúrgicas e trabalho social e desse modo tentou, como Sérgio, combinar a mística com os aspectos corporativos e sociais da vida monástica.

 

Paissy nunca retornou à Rússia, mas muitos dos seus discípulos viajaram da Romênia para lá e sob a sua inspiração, um renascimento monástico espalhou-se pela Rússia. Casas existentes foram revigoradas e muitas novas foram fundadas: em 1810 existiam 452 mosteiros na Rússia, enquanto que em 1914 existiam 1025. Esse movimento monástico, enquanto no seu aspecto externo estava preocupado em servir ao mundo, restaurou no centro da vida da Igreja a tradição dos não-possessores fortemente suprimida desde o século dezesseis. Ele foi marcado em particular pela prática altamente desenvolvida de orientação espiritual. Apesar de que o  "Ancião" ter sido uma figura característica em muitos períodos da história Ortodoxa, o século dezenove na Rússia, foi por excelência a época dos staretz.

 

O primeiro e grande dos staretz do século dezenove foi São Serafim de Sarov (1759-1833) que, de todos os santos da Rússia, é talvez o mais atrativo aos Cristãos não-Ortodoxos. Tendo entrado no Mosteiro de Sarov com dezenove anos, Serafim primeiro passou dezesseis anos na vida comum da comunidade. Então se retirou para passar os seguintes vinte anos em isolamento, vivendo primeiro numa cabana na floresta, depois (quando seus pés incharam e ele não podia mais andar com facilidade) recluso numa cela no mosteiro. Esse foi seu treinamento para a função de staretz . Finalmente em 1815 ele abriu a porta de sua cela. Da aurora à noite recebia todos que vinham a ele buscar ajuda, curando os doentes, aconselhando, freqüentemente dando as respostas antes que seu visitante tivesse tempo para fazer qualquer pergunta. Muitos, mesmo centenas, iam vê-lo num único dia. O modelo externo da vida de São Serafim lembra a de Santo Antonio ou (Antão) do deserto do Egito quinze séculos antes: a mesma retirada para depois voltar. Serafim é olhado corretamente como um santo caracteristicamente russo, mas ele é ao mesmo tempo um exemplo impressionante de quanto a Ortodoxia russa tem em comum com Bizâncio e com a tradição Ortodoxa universal ao longo dos séculos.

 

Serafim foi extremamente severo consigo próprio (num período de sua vida ele passou mil noites sucessivas em oração contínua, permanecendo imóvel através das longas horas sobre uma rocha), mas ele era gentil com os outros, sem, no entanto ser sentimental ou indulgente. O ascetismo não o tornou melancólico e se alguma vez a vida de um santo foi iluminada com alegria, foi a vida de Serafim. Ele praticava a Oração do Coração e, como aos hesicastas bizantinos, a ele também foi dada a visão da Luz Divina, Não-Criada. No caso de Serafim, na verdade a Luz Divina tomava uma forma visível transformando seu corpo. Um dos "filhos espirituais" de Serafim, Nicolas Motovilov, descreveu o que aconteceu num dia de inverno quando eles dois estavam conversando na floresta. Serafim tinha falado sobre a necessidade de adquirir o Espírito Santo e Motovilov perguntou como alguém poderia estar seguro de "estar no Espírito de Deus":

 

Então pai Serafim me pegou firmemente pelos ombros e disse:

 

“Meu filho, nesse momento nós estamos ambos no Espírito de Deus. Porque tu não olhas para mim?”.

 

"Eu não posso olhar, Pai”, respondi, "Porque seus olhos estão brilhando como faróis. Tua face se tornou mais brilhante que o sol e doem meus olhos ao olhar para ti."

 

"Não tenha medo”,  disse ele. "Nesse instante tu próprio te tornaste tão brilhante quanto eu. Tu mesmo estás agora na totalidade do Espírito de Deus; de outro modo tu não conseguirias me ver como estás vendo”.

 

Então inclinando sua cabeça para mim, ele murmurou docemente no meu ouvido: "Graças ao Senhor Deus por sua infinita bondade para conosco... Mas, porque meu filho, tu não olhas nos meus olhos! Olhes e não tenha medo: o Senhor está conosco”.

 

Depois dessas palavras eu dei uma olhada rápida em sua face e veio sobre mim um temor reverente ainda maior. Imaginem no centro do sol, em sua luz deslumbrante do meio-dia, a face de um homem falando a vós. Veríeis o movimento de seus lábios e a expressão mutável de seus olhos, ouviríeis a sua voz, sentiríeis alguém segurando vossos ombros, ainda que não vísseis mãos segurando os ombros, não veríeis sequer vossos próprios corpos, mas somente uma luz cegante espalhando-se por muitos metros e iluminando com seu brilho a cobertura de neve que cobria a floresta e os flocos de neve que continuavam a cair incessantemente...

 

- "O que tu tens?" Pai Serafim me perguntou.

 

- "Um incomensurável bem estar”, respondi.

 

- "Mas que tipo de bem estar? Como exatamente estas te sentindo?"

 

- "Eu sinto tanta calma”, respondi, "tanta paz na minha alma que não existem palavras que possam expressar o que sinto."

 

- "Essa”, disse Pai Serafim, "é a paz da qual o Senhor falou para seus discípulos: ”A minha paz eu vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá" (Jo 14;27). A paz que excede todo entendimento (Fi, 4,7). O que mais tu sentes?"

 

- "Infinita alegria em todo meu coração”.

 

E pai Serafim continuou:

 

- "Quando o Espírito de Deus desce sobre o homem e engolfa-o com a totalidade de sua presença, então a alma do homem flutua com alegria indescritível, pois o Espírito Santo preenche com júbilo tudo que Ele toca..." (Conversation of Saitn Serafin on the Aim of the Christian Life, Impresso em A Wonderful Revelation to the World, Jordanville, N.Y., 1953, págs.23-25)

 

E assim a conversa continua. A passagem inteira é de extraordinária importância para o entendimento da doutrina Ortodoxa da deificação e união com Deus. Ela mostra como a idéia Ortodoxa de santificação inclui o corpo: não é só a alma de Serafim (ou de Motovilov), mas todo o corpo que é transfigurado pela graça de Deus. Devemos notar que nem Serafim nem Motovilov estavam em estado de êxtase, ambos podiam conversar de maneira coerente e estavam ainda conscientes do mundo exterior, mas ambos estavam preenchidos com o Espírito Santo e circundados pela luz do tempo que há de vir.

 

Serafim não teve professor na arte da orientação espiritual e não deixou sucessor. Depois de sua morte o trabalho foi tomado por outra comunidade, o Mosteiro de Optino. De 1829 a 1923, quando o mosteiro foi fechado pelos bolcheviques, uma sucessão de startsi orientou muitos e sua influência estendeu-se como a de Serafim, sobre toda a Rússia. Os mais conhecidos dos startsi de Optino são Leonid (1768-1841), Macarius (1788-1860) e Ambrosio (1812-1891). Ao mesmo tempo que todos esses startsi pertenceram à escola de Paissy e eram todos devotados à Oração do Coração, cada um deles teve um caráter marcadamente de si próprio: Leonid, por exemplo, era simples, vivaz e direto, atraindo especialmente camponeses e mercadores, enquanto Macarius era altamente educado, um erudito em Patrística, um homem em contato estreito com os movimentos intelectuais de seu tempo, Optino influenciou muitos escritores incluindo Gogol, Khomiakov, Dostoyevsky, Solovieu e Tolstoi. (A historia de Tolstoi e sua relação com a Igreja Ortodoxa é extremamente triste. No fim de sua vida ele publicamente atacou a Igreja com grande violência e o Santo Sínodo, após algumas hesitações, o excomungou (fev. 1901). Quando ele jazia agonizante na casa do chefe de estação de Astapovo, um dos staretz de Optino viajou para vê-lo, mas teve seu acesso vetado pela família de Tolstoi). A figura marcante de Zossimo na novela de Dostoyevsky, os Irmãos Karamazov foi baseada parcialmente em pai Macárius ou Pai Ambrósio de Optino, apesar de Dostoyevsky dizer que havia se inspirado principalmente na vida de São Thinkon de Zadonsk.

 

"Existe uma coisa mais importante que todos os possíveis livros e idéias, escreveu o eslavófilo Ivan Kireyevsky" que é encontrar um staretz Ortodoxo diante de quem tu podes colocar todos teus pensamentos e de quem tu podes ouvir não a tua própria opinião, mas sim o julgamento dos Santos Padres. Deus seja louvado por tais startsi, ainda não desapareceram na Rússia." (citado por Metropolita Serafim [de Berlin e Europa Ocidental], L’Eglise Orthodoxe, paris, 1952, pág. 219).

 

Através dos startsi, o renascimento monástico influenciou a vida do povo todo. A atmosfera espiritual desse tempo é vividamente expressa em um livro anônimo, Relatos de um Peregrino Russo, que descreve as experiências de um camponês russo que vagueia de lugar para lugar praticando a Oração do Coração. Para aqueles que não sabem nada sobre a Oração do Coração, não pode haver melhor introdução que esse pequeno livro, que mostra que a Oração do Coração não é limitada a mosteiros, mas pode ser usada por todos, em qualquer forma de vida. Enquanto viaja, o peregrino carrega consigo uma cópia da Philocalia, presumivelmente a tradução eslavônia feita por Paissy. O Bispo Teófano, o Recluso (1815 — 1894), durante os anos de 1876 a 1890, publicou uma tradução muito expandida da Philocalia em cinco volumes, não em eslavônio mas em russo.

 

Até aqui nós falamos principalmente do movimento centrado nos mosteiros mas entre as grandes figuras da Igreja russa, no século dezenove, existiu também um membro do clero paroquial casado, João Sergiev (1829 — 1908), usualmente conhecido como João de Kronstadt, porque durante seu ministério ele trabalhou nesse lugar, Kronstadt, uma base naval e subúrbio de Petersburgo. O padre João é mais lembrado por seu trabalho como padre paroquial, visitando os pobres e os doentes, organizando trabalhos caritativos, ensinando religião para as crianças de sua paróquia, pregando continuadamente, e acima de tudo rezando com e para seu rebanho. Ele tinha uma intensa consciência do poder da oração, e quando ele celebrava a Liturgia era inteiramente arrebatado: "Ele não conseguia manter a medida prescrita da entonação litúrgica: ele clamava por Deus; ele gritava; ele chorava em face do Gólgota e da Ressurreição que se apresentavam para ele com um atordoante imediatismo" (Fedotov, A treasury of Russian Spirituality, pág 348). O mesmo sentido de imediatismo pode ser sentido em todas as páginas da autobiografia que o padre João escreveu, My Life in Christ. Como São Serafim, ele possuía o dom da cura, de percepções e entendimento e de orientação espiritual.

 

Padre João insistia em comunhão freqüente, apesar de na Rússia de seu tempo era completamente não usual os leigos comungar mais do que quatro ou cinco vezes por ano. Porque ele não tinha tempo para ouvir individualmente confissões de todos que vinham para comungar, ele estabeleceu uma forma de confissão pública, como todos gritando seus pecados simultaneamente. Ele tornou a iconostase num anteparo baixo, de modo a que o altar e os celebrantes ficassem visíveis durante o Oficio. Na sua ênfase na comunhão freqüente e na sua reversão para formas mais antigas de iconostase, padre João antecipou os desenvolvimentos litúrgicos da Ortodoxia contemporânea. Em 1964 ele foi proclamado Santo pela Igreja Russa no exílio.

 

Na Rússia do século dezenove houve um impressionante renascimento do trabalho missionário. Desde os dias de Mitrofan de Sarai e de Estevão de Perm, os russos tinham sido ativos missionários, e quando o poder moscovita avançou para o leste, foi aberto um grande campo para a evangelização de tribos nativas e de mongóis maometanos. Mas apesar da Igreja nunca ter cessado de mandar pregadores para os pagãos, nos séculos dezessete e dezoito os esforços missionários enfraqueceram particularmente depois do fechamento dos mosteiros por Catarina. Mas no século dezenove o desafio missionário foi retomado com nova energia e entusiasmo; a Academia de Kazan, aberta em 1842, esteve especialmente preocupada com estudos missionários e o clero nativo foi treinado; as escrituras e Liturgia foram traduzidas numa grande variedade de línguas. Só na área de Kazan, a Liturgia era celebrada em vinte e duas línguas ou dialetos.

 

É significativo que um dos primeiros líderes do renascimento missionário, o Arquimandrita Macarius (Glukharev, 1792-1847), foi um estudante do hesicasmo e conheceu os discípulos de Paissy Velichkovsky. O renascimento missionário teve suas raízes no renascimento da vida espiritual. O maior dos missionários do século dezenove foi Inocente (João Veniaminov, 1797-1879), Bispo de Kamchatka e das Ilhas Aleutas, que foi proclamado Santo em 1977. Sua diocese era do Estreito de Bhering até o Alaska, que naquele tempo pertencia à Rússia. Inocente desempenhou um papel importante no desenvolvimento da Ortodoxia das Américas, e milhões de Ortodoxos americanos hoje, podem olhar para ele com um de seus principais "Apóstolos."

 

No campo da teologia, a Rússia do século dezenove rompeu com sua excessiva dependência do ocidente. Isso foi principalmente devido ao trabalho de Aléxis Khomiakov (1804-1860), líder do círculo eslavófilo e talvez o primeiro teólogo original da história da Igreja Russa. Um proprietário de terras rurais e capitão da cavalaria aposentado, Khomiakov pertenceu à tradição de teólogos leigos que sempre existiu na Ortodoxia. Khomiakov argumentava que todo o Cristianismo ocidental, Romano ou Protestante, partilhavam das mesmas assunções e revelavam os mesmo pontos de vista fundamentais, enquanto a Ortodoxia é algo inteiramente distinto. Considerando que assim seja (Khomiakov continuava), não é suficiente para a Ortodoxia tomar emprestada a teologia do Ocidente, como estivera fazendo desde o século dezessete, ao invés de usar argumentos protestantes contra Roma, e argumentos romanos contra os Protestantes, os Ortodoxos deveriam retornar para suas próprias fontes autênticas, e redescobrir a verdadeira tradição Ortodoxa, que em suas pressuposições básicas, não é nem romana e nem reformada, mas única. Como seu amigo G. Samarin colocou, antes de Khomiakov "nossa escola Ortodoxa de teologia não estava em posição de definir nem latinismo nem protestantismo, porque separavam suas posições próprias da Ortodoxia, ela tinha se dividido em duas, e cada uma dessas metades tinha tomado uma posição verdadeiramente oposta a sua metade oponente, latina ou protestante, mas não acima dela." Foi Khomiakov quem primeiro olhou para o latinismo e para o protestantismo do ponto de vista da Igreja, conseqüentemente de uma posição mais elevada; e essa é a razão pela qual ele foi capaz de definir o latinismo e o protestantismo (citado em Birkbeck, Rússia and the English Church, pág. 14). Khomiakov estava particularmente preocupado com a doutrina da Igreja, sua unidade e autoridade; e aí ele deu uma contribuição duradoura à teologia Ortodoxa.

 

Khomiakov durante sua vida exerceu pouca ou nenhuma influência sobre a teologia ensinada nas academias e seminários, mas nesses locais também houve uma crescente independência da influência ocidental. Em 1900 a teologia acadêmica russa estava em seu pico, e existiram muitos teólogos, historiadores e liturgistas, inteiramente treinados em disciplinas acadêmicas ocidentais, que no entanto não permitiram que influências ocidentais distorcessem sua Ortodoxia. Nos anos seguintes a 1900 houve também um importante renascimento fora das escolas teológicas.Desde o tempo de Pedro, o Grande, a descrença tinha se tornado comum entre os "intelectuais" russos, mas nesses anos citados, um bom número de pensadores, por vários rumos, acabou encontrando seu caminho de volta à Igreja. Alguns eram ex-marxistas, como Sergio Bulgakov (1874-1944) (posteriormente ordenado presbítero) e Nicolas Berodyaev (1874-1948). Ambos subseqüentemente tiveram um papel importante na vida da imigração russa em Paris.

 

Quando se reflete sobre a vida de Thikon e Serafim, sobre os startsi de Potino e sobre João de Kronstadt, no trabalho missionário e teológico no século dezenove na Rússia, e que se pode ver como é injusto olhar para o período Sinodal simplesmente como um período de declínio. Um dos historiadores da Igreja Russa, professor Kartashev (1875-1960), disse com razão:

 

A subjugação foi enobrecida de dentro para fora pela humildade cristã ( ... ) A Igreja Russa sofreu sob o peso do regime, mas ela superou isso de dentro. Ela cresceu, se espalhou e floresceu de muitas maneiras diferentes, Assim o período do Santo Sínodo poderia ser chamado do mais brilhante e glorioso período da história da Igreja russa. (artigo no periódico, The Christian East, vol XVI, 1936, págs. 114 e 115).

 

Em 15 de agosto de 1917, seis meses depois da abdicação do Imperador Nicolas II, quando o governo provisório estava no poder, um concilio da Igreja de toda as Rússias foi reunido em Moscou, e não se dispersou até setembro do ano seguinte. Mais da metade dos delegados eram leigos — bispos e clero presentes somavam 250, os leigos 314 — mas (como o direito canônico exigia) a decisão final em questões especificadamente religiosas era reservada somente para os bispos. O Concílio analisou um amplo programa de reforma, seu ato principal tendo sido a abolição da forma Sinodal do governo implantada por Pedro, o Grande, e a restauração do Patriarcado. A eleição do Patriarca ocorreu em 5 de novembro de 1917. Em uma série de votações preliminares, três candidatos foram selecionados; mas a escolha final entre esses três foi por sorteio. Na primeira votação Antony (Khrapovitsky), Arcebispo de Kharkov, saiu em primeiro com 101 votos; depois Arsênio, Arcebispo de Novgorod, com 27 votos;e terceiro Tikhon (Beliavin), Metropolita de Moscou (1866-1925); com 23 votos. Mas quando o sorteio foi feito, foi o último desses três candidatos, Tikhon, que na realidade foi escolhido como Patriarca.

 

Eventos externos deram uma nota de urgência às deliberações. Nas primeiras sessões os membros podiam ouvir o som da artilharia bolshevik bombardeando o Kremlin, e dois dias antes da eleição do Patriarca, Lenin e seus associados ganharam o comando completo de Moscou. A Igreja não dispôs de tempo para consolidar o trabalho da reforma. Antes que o Concílio fosse encerrado no verão de 1918, seus membros souberam com horror do brutal assassinato de Vladimir, Metropolita de Kiev, pelos Bolsheviks. A perseguição havia começado.

 

18. O Século Vinte

 

Gregos e Árabes.

 

A Igreja Ortodoxa de hoje existe em duas situações contrastantes: fora da esfera comunista, estão quatro antigos Patriarcados e a Grécia e, sob o comunismo estão as igrejas eslavas e a Romênia. Enquanto o comunismo só afeta a periferia dos mundos católicos romano e protestante, no caso da Igreja Ortodoxa, a vasta maioria de seus membros vive em estados comunistas. No momento presente existem entre sessenta e noventa milhões de ortodoxos praticantes — o número de batizados é consideravelmente maior — e desses mais de oitenta e cinco por cento estão em países comunistas.

 

Segundo essa óbvia linha de divisão, neste capítulo nós vamos considerar as igrejas ortodoxas fora do bloco comunista e no próximo a posição da ortodoxia no "segundo mundo." O terceiro capítulo é dedicado à dispersão da ortodoxia em outras partes do mundo e à atividade missionária ortodoxa no tempo presente.

 

Das sete igrejas ortodoxas que não estão sob o domínio comunista, quatro — Constantinopla, Grécia, Chipre e Sinai — são predominantemente ou exclusivamente gregas, uma, Alexandria, é parcialmente grega, parcialmente árabe e africana. As duas restantes, Antioquia e Jerusalém, são, principalmente árabes, apesar de em Jerusalém, a alta administração da Igreja estar em mãos gregas.

 

O Patriarcado de Constantinopla, que no século X compreendia 624 dioceses, hoje está significativamente reduzido em tamanho. No presente, na jurisdição do Patriarca, estão: Turquia, Creta e várias outras ilhas do mar Egeu, todos os gregos na dispersão, junto com certas dioceses russas, ucranianas, polonesas e albanesas na emigração, Monte Atos e Finlândia.

 

Isso tudo junta cerca de três milhões de pessoas, mais da metade sendo gregos moradores na América do Norte.

 

No fim da primeira guerra mundial, a Turquia tinha uma população de um milhão e quinhentos mil gregos, mas a maior parte deles foram massacrados ou deportados no final da desastrosa guerra greco — turca de 1922, e hoje em dia (com exceção da Ilha de Imbros), o único lugar na Turquia onde é permitido que gregos morem é em Istambul (Constantinopla). Mesmo em Constantinopla, o clero ortodoxo (com exceção do Patriarca), é proibido de se mostrar nas ruas com vestes clericais. A comunidade grega na cidade diminuiu muito desde os distúrbios anti — gregos (e anti — cristãos), em setembro de 1955, quando numa única noite sessenta das oitenta Igrejas Ortodoxas em Constantinopla foram danificadas e saqueadas, o dano total das propriedades cristãs tendo atingido a cifra de cinqüenta milhões de libras esterlinas. Desde então, muitos gregos fugiram com medo ou foram forçadamente deportados e existe um grave perigo que o governo turco venha eventualmente a expelir o Patriarcado. Atenágoras, Patriarca entre 1948 e 1972, infatigável como trabalhador pela unidade cristã e seu sucessor, Patriarca Dimitri, mostram muita paciência e dignidade nessa trágica situação.

 

O Patriarcado tinha uma conhecida escola teológica na Ilha de Halki, perto de Constantinopla, que em 1950 começou a adquirir um certo caráter internacional, com estudantes não só da Grécia como do oriente próximo em geral. Mas, desafortunadamente, de 1971 em diante as autoridades turcas proibiram a escola de admitir qualquer novo estudante, e existe quase nenhuma perspectiva de que a admissão de novos alunos venha a ser reaberta.

 

Monte Athos, como Halki, não é somente grego, mas internacional. Dos vinte mosteiros que funcionam, no presente, dezessete são gregos, um russo, um sérvio e um búlgaro; nos tempos bizantinos um dos vinte mosteiros era georgiano, e existem também mosteiros latinos. Fora os mosteiros regulares, existem outras casas grandes e inumeráveis instalações menores conhecidas como skete ou kellia; existem também eremitas, a maioria dos quais vivem acima de precipícios assustadores na montanha sul da Península, em grutas ou cavernas freqüentemente acessíveis só por escadas de cordas. Assim as três formas de vida monástica, datando do século quarto no Egito — a vida comunitária, a vida semi-eremita, e os eremitas — continuam lado a lado na montanha sagrada, hoje em dia. É uma remarcada ilustração da continuidade da ortodoxia.

 

O Monte Athos enfrenta muitos problemas, o mais óbvio e sério sendo o declínio espetacular em números e parece que o número continuará a declinar, pois a maioria dos monges de hoje são homens velhos. Apesar de terem existido no passado períodos — por exemplo, no começo do século dezenove, quando os monges eram ainda menos numerosos que hoje, ainda assim o decréscimo súbito nos últimos cinqüenta anos é muito alarmante.

 

Em muitas partes do mundo ortodoxo de hoje, e não menos em certos círculos da própria Grécia, a vida monástica é vista com indiferença e desprezo e isso é em parte responsável pela falta de novas vocações para o Monte Athos. Outra causa é a situação política. Em 1903 mais da metade dos monges era eslava ou romena, mas depois de 1917 o fornecimento de noviços da Rússia foi cortado, enquanto desde 1945 o mesmo aconteceu com a Romênia e a Bulgária. O Mosteiro russo de São Panteleimon, que em 1904 tinha 1978 membros, em 1959 contava com menos de 60; o vasto skete russo de Santo Elias tem agora menos de cinco monges, enquanto o de Santo André encontra-se fechado; as espaçosas construções de Zographou, a Casa Búlgara, estão virtualmente desertas e no Skete romeno de São João Batista existem 4 ou 5 monges. Em 1966, após demoradas negociações, o governo grego permitiu que 5 monges da União Soviética entrassem em São Panteleimon e que 4 da Bulgária entrassem em Zographou: mas claramente, um recrutamento em escala muito maior é necessário. Das comunidades não-Gregas só o mosteiro Sérvio está em posição ligeiramente melhor, porque alguns jovens foram recentemente autorizados a vir da Iugoslávia para serem recebidos como monges.

 

Nos tempos Bizantinos a Montanha Santa, era um centro de ensino teológico, mas hoje em dia a maioria dos monges vem de famílias de camponeses e tem muito pouca educação. Isso, apesar de não ser uma situação nova, tem certas conseqüências desafortunadas. Seria de fato triste se o Monte Athos para se modernizar o fizesse a custa dos valores tradicionais e atemporais do monasticismo Ortodoxo; mas enquanto os mosteiros continuarem intelectualmente isolados, ele não poderão dar a sua completa (e inteiramente necessária) contribuição para a vida da Igreja como um todo. Existem sinais de que os lideres do Monte Athos estão conscientes do perigo desse isolamento e estão procurando meios de superar isso. A Escola Athonita de Teologia foi reaberta em 1953, na esperança de atrair e treinar um tipo diferente de noviços. Pai Theoklitos, do mosteiro de Dionysiov, vai regularmente para Atenas e Tessalonica para falar em reuniões, e escreveu um livro importante sobre vida monástica, Entre o Céu e a Terra, assim como um estudo sobre São Nicodemos da Montanha Santa. Pai Gabriel, por muitos anos Abade de Dionysiov, também é bastante conhecido e respeitado na Grécia toda.

 

Mas seria errado julgar o Monte Athos ou qualquer outro centro monástico por somente números ou produção literária, pois o verdadeiro critério não é tamanho ou escolaridade mas a qualidade da vida espiritual. Se no Monte Athos hoje em dia existem sinais em alguns lugares de uma alarmante decadência, no entanto não pode existir dúvida que a Montanha Santa ainda continua a produzir Santos, Ascetas e homens de oração formando nas traduções clássicas da Ortodoxia. Um dos tais monges foi Pai Silvano (1866-1938), do Mosteiro Russo de São Panteleimon: de formação camponesa, homem simples e humilde, sua vida foi externamente vazia de eventos, mas ele deixou atrás de si algumas profundas e impressionantes meditações, que foram publicadas em várias línguas (ver Arquimandrita Sofrony, The Monk of Mont Athos, E Wisdom from Mont Athos, London 1973-1974 [muito valiosos]). Outro desses monges foi Pai José (morto em 1959), um grego que viveu semi-eremiticamente no Skete Novo, no sul do Monte Athos, e que juntou em torno de si um grupo de monges que sob sua orientação praticavam a Oração do Coração continuamente. Enquanto o Monte Athos tiver entre seus membros, homens como Silvano e José, ele não estará de modo algum falhando em suas tarefas. (o texto acima descreve a situação como estava no Monte Athos em 1960 e 1966. Desde então houve uma notável melhora. Apesar dos Mosteiros não Gregos terem sido capazes de receber somente poucos novos recrutas, em muitas casas gregas houve um surpreendente aumento em números, e muitos dos novos monges são dotados e bem educados. O renascimento é particularmente evidente em Simonos Petras, Phillotheov e Stravonikita. Em todos esse mosteiros há excelentes Abades).

 

A Igreja Ortodoxa da Finlandia deve sua origem a monges do mosteiro Russo de Valam no lago Laroga, que pregaram entre as tribos finlandesas pagãs em Karelia durante a Idade Média. Os Ortodoxos finlandeses eram dependentes da Igreja Russa até a Revolução mas desde 1923 eles estiveram sob os cuidados espirituais do Patriarcado de Constantinopla, apesar da Igreja Russa não ter aceitado essa situação até 1957. A vasta maioria de Finlandeses são Luteranos, e os 65.000 Ortodoxos compreendem somente 1,5 por cento da população. Existe um seminário Ortodoxo em Kuopio. "Com sua juventude atuante; preocupada com contatos internacionais e ecumênicos, ansiosa por parecer uma comunidade ocidental e européia, ao mesmo tempo guardando suas tradições Ortodoxas, a Igreja Finlândia está talvez destinada a desempenhar um papel importante no testemunho ocidental da Ortodoxia." (J. Meyendorff, L’Eglise Orthodoxe hier et avyourd’hui, Paris 1960, pg. 157).

 

O Patriarcado de Alexandria tem sido uma Igreja pequena desde a separação dos monofisistas no quinto século, quando a grande maioria dos cristãos do Egito rejeitaram o Concílio de Calcedônia. Hoje eles são 10.000 Ortodoxos no Egito, e talvez 150.000 a 250.000 em outros lugares da África. O chefe da Igreja de Alexandria é conhecido oficialmente como "Papa e Patriarca": no uso Ortodoxo, o título "Papa" não é limitado ao Bispo de Roma. O Patriarca e a maioria do clero são gregos. O continente Africano inteiro fica sob o encargo do Patriarca, e desde que os Ortodoxos estão justo agora iniciando um trabalho missionário na África Central, pode muito bem acontecer que a antiga Igreja de Alexandria, muito diminuída no presente, venha a se expandir por meios novos e inesperados nos anos que virão. (sobre missões na África, ver capítulo 9).

 

O Patriarcado de Antioquia soma 300.000 Ortodoxos na Síria e Líbano, e talvez mais 150.000 no Iraque e na América (Católicos romanos, uniatas e latinos, somam cerca de 640.000 na Síria e no Líbano). O Patriarca que vive em Damasco tem sido um Árabe desde 1899, mas antes disso, ele e o alto clero eram gregos, apesar da maioria do clero paroquial, e povo do Patriarcado Antioquino terem sido e serem hoje em dia Árabes.

 

Há uns trinta anos atrás um líder Ortodoxo no Líbano, Padre (hoje Bispo) George Khodre, disse: "Síria e Líbano formam um quadro escuro entre os paises Ortodoxos." Na verdade, até recentemente o Patriarcado de Antioquia podia sem qualquer injustiça ser tomado como um surpreendente exemplo de uma Igreja "Dormente." Hoje em dia há sinais de um despertar, principalmente como resultado do Movimento Jovem do Patriarcado de Antioquia, uma organização notável e inspiradora, originalmente formada por um pequeno grupo de estudantes em 1941-1942. O Movimento Jovem gerou escolas de catecismos, seminários sobre as sagradas escrituras, também publicando um periódico Árabe e outros materiais religiosos. Tomou conta de movimentos sociais, combatendo a pobreza e provendo assistência médica. Encorajou a oração e está tentando restabelecer a comunhão freqüente; e sob sua influência duas excelentes comunidades religiosas foram fundadas em Trípoli e Deir-el-Harf. No Movimento jovem em Antioquia, assim como nos movimentos das "Casas Missionárias" da Grécia, um papel de liderança é desempenhado pelo Laicado.

 

O Patriarcado de Jerusalém sempre ocupou uma posição especial na Igreja; nunca com grandes números, sua tarefa principal sempre foi guardar os lugares sagrados. Como em Antioquia, Árabes formam a maioria do povo; eles somam cerca de 60.000 mas estão decrescendo, pois antes da guerra de 1948 eram 5000 gregos dentro do Patriarcado e no presente são muito menos (mais ou menos 500). Mas o Patriarca é ainda um grego, e a Irmandade do Santo Sepulcro, que dela zela pelos lugares sagrados, está completamente sob controle grego.

 

Antes da revolução Bolshevik, um dado notável na vida da Palestina Ortodoxa era o fluxo anual de peregrinos Russo, pois com freqüência encontravam-se mais de 10.000 ao mesmo tempo na Cidade Santa. Em sua maior parte eles eram camponeses velhos, para quem essa peregrinação era o evento mais notável de suas vidas: Depois de um percurso de talvez muitos milhares de quilômetros através da Rússia, eles tomavam um barco na Crimeia e enfrentavam uma viagem que para nós de hoje parece ser de um incrível desconforto, chegando se possível a tempo para a Páscoa (ver Stephen Graham, With the Russian Pilgrim to Jerusalém, London, 1913 — O autor viajou com os peregrinos, e nos dá uma reveladora visão dos camponeses Russos e sua Religiosidade externa). A Missão Espiritual Russa na Palestina assim como cuidava dos peregrinos Russos, fazia um mui valioso trabalho pastoral entre os Árabes Ortodoxos e mantinha um grande número de escolas. Essa Missão Russa foi naturalmente reduzida a partir de 1917, mas não desapareceu inteiramente, e ainda existem três mosteiros Russos em Jerusalém; dois deles recebem moças Árabes como noviças.

 

A Igreja da Grécia continua a ocupar continua a ocupar um lugar central na vida do país como um todo. Escrevendo nos primeiros anos da década de 1950, um simpatizante anglicano escreveu: "Surpresa! Quando tudo é dito a respeito do espalhamento do secularismo e indiferença, permanece ainda uma nação Cristã num sentido do qual nós no ocidente não podemos ter senão uma pequena concepção." (Hammond, the Waters of Norah, pg. 25). No censo de 1951, de uma população total de 7.632.806, os Ortodoxos somavam 7.432.559, outros Cristãos não mais do que 41107; além disso 112.665 maometanos, 6325 judeus, 29 pessoas de outras religiões, e 121 ateus. Hoje existem muito mais indiferenças do que em 1950, e o governo socialista eleito em 1981 começou a tomar medidas para uma separação na Igreja e do Estado; mas a Igreja continua a influenciar profundamente!

 

As dioceses gregas de hoje em dia, como na Igreja primitiva, são pequenas: existem 78 (contraste com a Rússia antes de 1917, com 67 dioceses para 100 milhões de fieis), e no norte da Grécia muitas dioceses tem menos de 100 paróquias. Como ideal e muito freqüentemente na realidade, o Bispo Grego não, é meramente uma figura administradora distante, mas uma figura acessível com quem seu rebanho pode ter contato pessoal, e em quem os pobres e simples confiam, chamando diariamente para aconselhamento prático e espiritual. O Bispo Grego delega muito menos para o seu clero paroquial que um Bispo no ocidente, e em particular ele reserva para si muito da tarefa de pregação, ainda que nisso seja assistido por um pequeno grupo de monges e/ou de leigos bem instruídos, trabalhando sob sua direção.

 

Por isso quase nenhum membro do clero casado na Grécia, no passado fazia sermão (Homilia); nem isso é surpresa, pois poucos tinham recebido um treinamento teológico regular. Na Rússia pré-revolucionária todos os Padres paroquiais tinham passado por um seminário teológico, mas na Grécia no ano de 1920 de 4500 membros do clero casado, menos de 1000 tinham recebido mais do que uma simples educação escolar elementar. Por isso o Padre no meio rural grego era fortemente integrado com a comunidade local; usualmente ele era um nativo na cidade à qual servia; depois da ordenação, mesmo sendo Padre ele continuava com seu trabalho anterior, fosse qual fosse — carpinteiro, sapateiro ou mais comumente fazendeiro; ele não era um homem de estudos mais altos que os leigos que os cercavam, muito possivelmente nunca tinha estudado num seminário. Esse sistema teve certas vantagens inegáveis, e em particular significou que a Igreja Grega evitou um golfo e espiritual entre o pastor e o povo, como por exemplo existiu na Inglaterra por séculos. Mas com a elevação dos padrões educacionais da Grécia nos anos recentes, uma modificação no sistema tornou-se necessária. Hoje em dia o Padre necessita de um treinamento mais especializado, e parece que daqui para frente, a maioria senão todos, os ordenados gregos serão mandados a estudar em um seminário.

 

As duas universidades mais antigas da Grécia, Atenas e Tessalônica têm Faculdades de Teologia. Não-ortodoxos ficam freqüentemente surpresos com o fato de que a grande maioria dos professores, em ambas as faculdades, é leiga e que muitos dos estudantes não tem intenção de serem ordenados; mas os Ortodoxos consideram natural que os leigos assim como o clero, venham a se interessar por teologia. Muitos estudantes depois ensinam religião em escolas secundárias, e é usual que sejam os mestres-escolas locais que os Bispos escolham como seus pregadores leigos. Somente alguns poucos desses estudantes tornam-se clero paroquial; alguns outros poucos são recebidos como monges, apesar de somente uma minoria desses monges graduados irem viver como membros residentes de um mosteiro: A maioria dos casos eles trabalharão nas equipes de Bispos, ou talvez se tornem pregadores.

 

Os professores de teologia da Grécia produziram um considerável corpo de trabalhos importantes no último meio século: Pensa-se imediatamente em Chrestos Androutsos, autor de uma famosa Teologia Dogmática publicada pela primeira vez em 1907, e mais recentemente em nomes com P.N. Trembelas, P.I. Bratsiotis, I.N. Karmiris, B. Ioanvides e Ieronymos Kotsoni, o recente Arcebispo de Atenas, um expert em lei canônica. Mas ao mesmo tempo que se reconhece as notáveis conquistas da teologia grega moderna, não se pode negar que ela possui certas falhas. Muitos escritos teológicos gregos, particularmente se comparados, com o trabalho de membros da Imigração Russa, parecem ter um tom árido e acadêmico. A situação mencionada em capítulo anterior continua até hoje, e muitos teólogos gregos estudaram por um período em uma universidade estrangeira, normalmente na Alemanha; e algumas vezes o pensamento religioso Alemão parece ter influenciado seus trabalhos à custa de sua própria tradição Ortodoxa. A teologia na Grécia hoje em dia sofre por conta do divórcio entre os mosteiros e a vida intelectual da Igreja: É uma teologia dos salões de leitura das universidade, mas não uma teologia mística, como nos idos de Bizâncio quando a teologia florescia nas celas monásticas tanto quanto nas universidades. No entanto na Grécia atual existem sinais encorajadores de uma aproximação mais flexível à teologia, e de uma vívida recuperação do Espírito dos Santos Padres.

 

O que dizer da vida monástica? Em comunidades de homens, a diminuição é alarmante na Grécia continental como era na Ilha do Monte Athos até recentemente, e muitas casas correm o risco de serem fechadas todas juntas. Existem poucos homens instruídos nas comunidades. Mas essa perspectiva sombria é aliviada por surpreendentes exceções, como por exemplo o Mosteiro de Paráclito em Oropos (Atttica) fundado recentemente. Algumas comunidades mais velhas ainda atraem noviços — Por exemplo São João, o evangelista na Ilha de Pathos (sob o Patriarcado Ecumênico). Em Meteora alguns esforços notáveis foram feitos pelo Metropolita Dionysius de Trikkala para reviver a vida monástica. Ali existe uma séria de casas monásticas, penduradas em pináculos rochosos numa parte remota da Tessália, que foram parcialmente repopuladas nos anos 60 (do século vinte) por monges jovens e bem instruídos. Mas o fluxo constante de turistas tornou a vida monástica impossível e quase todos os monges nos anos 70 mudaram-se para o Monte Athos.

 

Mas enquanto a situação dos mosteiros de homens é freqüentemente crítica, as comunidades de mulheres estão numa situação muito mais vívida, e o número de monjas está aumentando rapidamente. Alguns dos conventos mais ativos são de origem muito recente, tal como convento da Santíssima Trindade em Aegina, datando de 1904, cujo fundador Nektários (Kephalas), Metropolita de Pentápolis (1846-1920), já foi canonizado; ou o convento de Nossa Senhora Auxiliadora em Chios, estabelecido em 1928, que agora já tem 50 membros. O convento da Anunciação em Pathos, iniciado em 1936 pelo Padre Anfilóquio (morto em 1970; talvez o maior pneumatikos ou Pai Espiritual na Grécia pós-guerra) Já tem outros dois conventos ligados a ele, em Rhodes e Kalymnos. (A respeito desse assunto deve-se mencionar também o impressionante Convento Velho Calendarista de Nossa Senhora em Keratea, Attica fundado em 1925, que hoje tem entre 200 e 300 monjas. Sobre os Velhos Calendaristas, ver cap.15).

 

Nos últimos vinte anos um número surpreendente de obras sobre espiritualidade monástica foi reimpresso na Grécia, incluindo uma nova edição da Philocalia. Parece existir um interesse revivido sobre os tesouros ascéticos e espirituais da Ortodoxia, um desenvolvimento que dá um bom corpo para o futuro dos mosteiros.

 

A arte religiosa na Grécia está sofrendo uma benvinda transformação. O desprezível estilo ocidental, universal no início do século vinte, tem sido fortemente abandonado em favor da antiga tradição Bizantina. Numerosas Igrejas em Atenas e outros lugares foram redecoradas recentemente com um esquema completo de ícones e frescos, executados em estreita conformidade com as regras tradicionais. O líder desse reviver artístico, Photíus Kontoglou (1896-1965), tornou-se notório por sua descompromissada advocacia da arte Bizantina. Típico de seu pensamento é seu comentário sobre a arte da Renascença Italiana: "Aqueles que enxergam de modo secular dizem que ela progrediu, mas aqueles que a vêem de modo religioso dizem que ela declinou." (C. Cavarnos, Byzantine Sacred Art: Selected Writings of the comtemporany Greek Icon painter Folis Kontoglous, New York, 1957, pg. 21).

 

A Grécia tem uma contraparte Ortodoxa a Lurdes: A ilha de Tinos, onde em 1823 um ícone milagroso da Virgem com o Menino foi encontrado, enterrado nas fundações de uma igreja em ruínas. Um grande santuário de peregrinação existe hoje no local, que é visitado particularmente pelos doentes, e muitos casos de curas milagrosas ocorreram. Há sempre grandes multidões na ilha por ocasião da Festa da Dormição da Virgem (15 de agosto no calendário Juliano).

 

Na Igreja Grega nos dias de hoje há um impressionante desenvolvimento do movimento "Lar Missionário," devotado a trabalho evangelizador e educacional. Apostoliki Diaconia ("Serviço Apostólico"), a organização oficial responsável pelo "Missão do Lar," foi fundada em 1930. Ao longo do tempo surgiram numerosos movimentos paralelos, que mesmo colaborando com os Bispos e outras autoridades da Igreja, nasceram da iniciativa privada — Zoe, Sotir, the Orthodox Christian Unions, e outros. O mais antigo, mais influente, e mais controvertido desses movimentos, Zoe ("Vida"), também conhecido como "Fraternidade de Teólogos," foi iniciado pelo Padre Eusébius Matthopoulos em 1907. É de fato uma espécie de ordem semi-monástica, pois todos os seus membros devem ser não-casados, apesar deles não receberem nenhum voto formal e serem livres para deixar a Fraternidade quando quisessem. Cerca de um quarto da Fraternidade são Monges (nenhum dos quais vive regularmente em um Mosteiro) e o resto leigos. Ficamos nos perguntando o quanto Zoe, com sua estrutura monástica aponta o caminho dos futuros desenvolvimentos da Igreja Ortodoxa. No passado a tarefa principal de um Monge oriental era rezar; mas, além desse tradicional tipo de monasticismo, não há espaço na Ortodoxia para ordens Religiosas "Ativas," paralelas aos dominicanos e franciscanos no ocidente, e dedicadas ao trabalho da evangelização do mundo?

 

Esses movimentos de "Lares Missionários," especialmente Zoe, põe grande ênfase no estudo das Sagradas Escrituras e encorajam a comunhão freqüente. Entre eles, publicam um número impressionante de periódicos e livros, com uma circulação bastante ampla. Sob sua liderança e guia existem hoje 9500 escolas de catecismo (em 1900 existiam poucas, talvez nenhuma na Grécia) e, é afirmando que cinqüenta e cinco por cento das crianças gregas — em algumas paróquias uma proporção mais alta — regularmente assistem as aulas de catecismo. Além dessas escolas, um vasto programa de trabalho para o jovem é realizado: "O período da adolescência," para citar um escritor anglicano, "Quando uma proporção abrangente de nossas crianças perde todo contato vital com a Igreja, é quando os jovens Cristãos gregos começam a ter uma participação ativa na vida de suas comunidades locais" (P. Hammona, The Watersof Marah, pg. 133).

 

A influência desses movimentos de "Lares Missionários" teve um declínio considerável nas décadas de 1960 e 1970, e em particular as palavras citadas — escritas há mais de vinte e cinco anos atrás — desafortunadamente deveriam hoje ser requalificadas.

 

A antiga Igreja de Chipre, independente desde o Concílio de Efeso (431), tem atualmente 600 padres e mais de 450.000 fiéis. O sistema turco pelo qual o chefe da Igreja é também o líder civil da população Grega, foi mantido pelos Britânicos quando eles tomaram a ilha em 1878. Isso explica o duplo papel, político e religioso, desempenhado por Makários, o chefe recente da Igreja Cipriota, "Etnarca" e Presidente, bem como Arcebispo.

 

A Igreja do Sinai, de algum modo uma "excentricidade" no mundo Ortodoxo, consistindo como é o caso em um único Mosteiro, Santa Catarina, aos pés da montanha de Moisés. Existe alguma discordância se o Mosteiro deveria ser qualificado como uma Igreja "Autocéfala" ou "Autônoma" (ver p.314). O Abade, que é sempre um Arcebispo, é eleito pelos Monges e consagrado pelo Patriarca de Jerusalém; o Mosteiro é totalmente independente de controle externo. Triste mencionar que hoje existem menos de vinte monges.

 

19. Ortodoxia Ocidental

 

Olhemos, brevemente, para as comunidades Ortodoxas na Europa Ocidental e na América do Norte. Em 1922, os gregos criaram um Exarcado para a Europa Ocidental, com seu centro em Londres. O primeiro Exarca, Metropolita Germanos (1872-1951), foi sobejamente conhecido por seu trabalho em prol da unidade Cristã e teve um papel destacado e de liderança, no Movimento Fé e Ordem entre as guerras. Em 1962, esse Exarcado foi divido em quatro Dioceses separadas, com Bispos em Londres, Paris, Bonn e Viena; mais Dioceses foram formadas posteriormente na Escandinávia e na Bélgica, e a mais recente de todas (1982), na Suíça. Existem cerca de 130 paróquias na Europa Ocidental, com Igrejas permanentes e clero residentes, e além desses, grupos de Igreja Menores, mas numerosos.

 

Os centros principais da Ortodoxia Russa na Europa Ocidental, são Munique e Paris. Em Paris, o celebre Instituto São Sérgio de Teologia (sob a jurisdição da jurisdição da Igreja Russa em Paris), fundado em 1925, agiu como um importante ponto de contato entre ortodoxos e não ortodoxos. Particularmente durante o período entre-guerras, o Instituto contou entre os seus numerosos professores, com um grupo extraordinariamente brilhante de "scholars." Esses, anteriormente ou no presente no staff de São Sérgio, incluem: Arcipreste Sérgio Bulgakov (1871-1944), o primeiro Reitor; Bispo Cassiano (1892-1965), seu sucessor; A. Kartashev (1875-1960); G.P. Fedotov (1886-1951), P.Evdokimov (1901-1970), Padre Boris Brobriskoy e o francês Olivier Clément. Três professores, Padres Gerorges Florovsky, Alexander Schmemann, John Meyendorff, mudaram-se para a América, onde tiveram um papel decisivo no desenvolvimento da Ortodoxia Americana. Uma lista de livros publicados pelos professores do Instituto, entre 1925 e 1947, ocupa 92 páginas e inclui setenta livros completos — um feito destacado, rivalizado por muitas poucas Academias (ainda que maiores) de qualquer Igreja. São Sérgio é também conhecido por seu coral, que muito fez para reviver o uso de antigos cantos eclesiásticos da Rússia. Quase que completamente russo entre as duas guerras, agora o instituto capta a maioria de seus estudantes de outras nacionalidades. Em 1981, por exemplo, dos trinta e quatro estudantes, sete eram Russos (sendo seis nascidos na França), sete Gregos, cinco Sérvios, um Georgiano, um Romeno, sete Franceses, dois Belgas, dois da África, um de Israel e um da Holanda. Os cursos são ministrados hoje em dia, principalmente em Francês.

 

Na Europa Ocidental, durante o período de pós-guerra, existiu, também, um ativo grupo de teólogos Ortodoxos pertencentes ao Patriarcado de Moscou, incluindo Vladimir Lossky (1905-1958), Arcebispo Basil (Kriwocheine) de Bruxelas, Arcebispo Aléxis (Van Der Mensbrugghe) (1899-1980) e Arcebispo Peter (L´Huillier) (atualmente nos Estados Unidos), sendo os dois últimos convertidos para a Ortodoxia. Outro convertido, o Francês Padre Lev (Gillet) (1892-1980), um Padre do Patriarcado Ecumênico, escreveu vários livros, como por exemplo, "Um Monge da Igreja do Oriente"

 

Muitos mosteiros Russos existem na Alemanha e na França. O maior de todos é o mosteiro para mulheres dedicado ao ícone de Lesna da Santa Mãe de Deus, em Provemont, na Normandia (Igreja Russa no exílio); existe um mosteiro menor para mulheres em Bussy-en-Othe, em Yonne (Arquidiocese Russa para a Europa Ocidental). Na Grã-Bretanha existe o mosteiro de São João Batista, em Tholleshunt Knights, Essex (Patriarcado Ecumênico), fundado pelo Arquimandrita Sofrony, um discípulo do Padre Silvano do Monte Athos, com monges Russos, Gregos, Romenos, Alemães e Suíços, e com uma comunidade para mulheres na proximidade. Existe, também, o mosteiro da Anunciação em Londres (Igreja Russa no exílio), com uma Abadessa Russa e monjas Árabes, e algumas fundações menores em vários lugares.

 

Na América do Norte existem entre dois e três milhões de Ortodoxos, subdivididos em, no mínimo, quinze nacionalidades e jurisdições, e com um total de mais de quarenta Bispos. Antes da primeira guerra mundial, os Ortodoxos da América, qualquer que fosse sua nacionalidade, procuravam o Arcebispo Russo atrás de liderança e cuidados pastorais, pois entre as nações Ortodoxas, foi a Rússia que primeiro estabeleceu Igreja no novo mundo. Oito monges, principalmente de Valamo, no lago Ladoga, chegaram originalmente no Alaska, em 1794: um deles, Padre Herman, de Spruce Island foi canonizado em 1970. O trabalho no Alaska foi muito encorajado por Inocêncio Veniaminov, que trabalhou no Alaska e na Sibéria Oriental, de 1823 a 1968, primeiro como Padre e depois como Bispo. Ele traduziu o Evangelho de São Mateus, a Liturgia e um Catecismo em Aleutiano. Em 1845, ele criou um mosteiro em Sitka, no Alaska, em 1859 um Episcopado Auxiliar foi instalado lá, o qual tornou-se uma Sé missionária, independente quando o Alaska foi vendido para os Estados Unidos, em 1887. No Alaska, hoje em dia, de uma população total de duzentas mil pessoas, talvez existam vinte mil Ortodoxos, quase todos nativos; o seminário foi reaberto em 1973.

 

Enquanto isso, na Segunda metade do século XIX, numerosos Ortodoxos começaram a se estabelecer fora do Alaska, em outras partes da América. Em 1872, a Diocese foi transferida de Sitka para São Francisco, em 1905 para Nova York, ainda que um Bispo Auxiliar tenha permanecido no Alaska. Na virada do século, o número de Ortodoxos foi muito aumentado por numerosas Paróquias uniatas que se reconciliaram com a Ortodoxia. O futuro Patriarca Tikhon foi Arcebispo na América do Norte por nove anos (1898-1907). Depois de 1917, quando as relações com a Igreja da Rússia ficaram confusas, cada grupo nacional tornou-se uma organização separada e, surgiu a presente multiplicidade de jurisdições. Muitos vêem, na concessão dada por Moscou de Autocefalia para a OCA (Ortodox Church of American), um esperançoso primeiro passo, na direção da restauração da unidade Ortodoxa na América.

 

A Ortodoxia Grega, na América do Norte, conta com mais de um milhão de fieis, com mais de quatrocentas Paróquias. São chefiadas pelo Arcebispo Jakovos, que preside um Sínodo de dez Bispos (um mora no Canadá, e outro na América do Sul). A escola teológica Grega da Santa Cruz, em Boston, tem perto de cento e dez estudantes, muitos deles candidatos ao sacerdócio. Os Bispos da Arquidiocese Grega na América vieram, na maioria dos casos da Grécia, mas quase todo o clero paroquial nasceu e foi criado nos Estados Unidos. Existem dois ou três pequenos mosteiros na Arquidiocese Grega; o Mosteiro da Transfiguração, em Boston, muito maior, originalmente Grego, está agora sob a Igreja Russa no exílio.

 

Os Russos tem quatro seminários teológicos na América: São Vladimir, em Nova York e São Tikhon, em South Canaan Pennsylvania (ambos pertencentes a OCA); Holy Trinity Seminary, em Jordanville, Nova York (Igreja Russa no exílio); e o seminário de Cristo, o Salvador em Johnstown, Pennsylvania (Diocese Carpatho-Russa). Existem vários mosteiros russos, sendo o maior o Holy Trinity, Jordanville, com trinta monges e dez noviços. O mosteiro, além de manter um seminário para estudantes de teologia, tem uma imprensa bastante ativa, que produz livros litúrgicos em Eslavônico de Igreja e outros livros e periódicos em Russo ou Inglês. Os monges também plantam e colhem e construíram sua própria Igreja, decorada por dois membros da comunidade, com ícones e afrescos, na melhor tradição da arte religiosa Russa.

 

A vida Ortodoxa na América de hoje, mostra uma encorajadora vitalidade. Novas Paróquias estão sendo formadas continuadamente e novas Igrejas construídas. Em alguns lugares faltam Padres, mas enquanto numa geração atrás o clero na América era ordenado apressadamente, com pouco treino, hoje em dia, em quase todas jurisdições, a maioria, senão todos os ordenados têm um grau teológico. Teólogos Ortodoxos na América são poucos e, freqüentemente, sobrecarregados, mas seu número está crescendo gradualmente. Santa Cruz e São Vladimir (seminários já citados) produzem substancial quantidade de periódicos na língua Inglesa.

 

O grande problema com o qual se defronta a Ortodoxia Americana é o do nacionalismo e sua posição na vida da Igreja. Entre membros de muitas jurisdições, existe em forte sentimento de que a presente subdivisão em grupos nacionais, está retardando tanto o desenvolvimento interno da Ortodoxia na América, quanto seu testemunho perante o mundo exterior. Existe o perigo de que o nacionalismo excessivo venha a alienar a geração mais jovem de Ortodoxos da Igreja. Essa geração mais jovem não conhece outro país, que não a América, seus interesses são americanos, sua língua primeira (freqüentemente a única) é o Inglês: não se afastarão eles da Ortodoxia, se sua Igreja insistir na louvação em uma língua estrangeira, e agir como se fosse um depositório de relíquias culturais do "velho país"?

 

Esse é o problema, e muitos diriam que só existe uma solução: formar uma única e autocéfala "American Orthodox Church." Essa visão de uma Igreja Americana Autocéfala tem seus mais ardentes advogados na OCA, que vê-se com o núcleo de tal Igreja e entre os Sírios. Mas há outros, especialmente entre os Gregos, os Sérvios e Russos da Igreja no Exílio que vêem com reservas essa ênfase sobre a Ortodoxia Americana. Eles são profundamente conscientes do valor das civilizações cristãs, desenvolvidas por muitos séculos pelos povos gregos e eslavônicos e eles sentem que seria um empobrecimento desastroso para a geração mais jovem, se sua Igreja tivesse que sacrificar essa grande herança e tornar-se completamente "americanizada." Contudo, podem os bons elementos das tradições nacionais serem preservados, sem, ao mesmo tempo, obscurecer a universalidade da Ortodoxia?

 

Muitos dos que são a favor da unificação, estão conscientes da importância das tradições nacionais e se dão conta dos perigos aos quais as minorias Ortodoxas na América seriam expostas se elas cortassem suas raízes nacionais e fossem imersas na cultura secularizada da América contemporânea. Eles sentem que a melhor política é que as Paróquias, no presente, sejam "bilíngües," oferecendo ofícios tanto na língua do país mãe com em inglês. De fato, essa situação "bilíngüe" está se tornando usual em muitas partes da América. Todas as jurisdições, em princípio, permitem o uso do inglês nos ofícios, e na prática estão começando a empregar o inglês, mais e mais, esta língua é particularmente comum na OCA e na Arquidiocese Síria,. Por um longo período os Gregos, ansiosos por preservarem sua herança helênica como uma realidade viva, insistiram que somente a língua grega deveria ser usada em todos os ofícios, mas a partir de 1970 a situação começou a mudar e, em muitas Paróquias o inglês é hoje em dia, tão empregado quanto o Grego.

 

Nos últimos anos tem aparecido crescentes sinais de cooperação entre grupos nacionais. Em 1954, o Conselho dos Jovens Líderes Ortodoxos Orientais da América foi fundado, no qual a maioria das organizações de jovens ortodoxos participou. Desde 1960 um comitê de Bispos Ortodoxos, representando a maioria (mas não todas) das jurisdições nacionais, tem se reunido em Nova York sobre a presidência do Arcebispo Grego (esse comitê existiu antes da guerra, mas caiu em estado de espera por muitos anos). Até agora este comitê, conhecido como a "conferência permanente" ou "SCOBA," não foi ainda capaz de contribuir tanto para a unidade da Ortodoxia, como era, originalmente, esperado. A concessão de Autocefalia para a OCA, com o tempo, originou grande controvérsia e os problemas levantados então, permanecem até agora não resolvidos; mas na prática a colaboração inter-ortodoxa ainda continua.

 

Uma pequena minoria em um ambiente estrangeiro, os Ortodoxos da diáspora acharam uma tarefa difícil, até mesmo assegurar sua sobrevivência. Mas alguns deles, a qualquer custo, constataram que além da mera sobrevivência, eles tinham uma tarefa mais abrangente, Se eles acreditam que a fé Ortodoxa é a verdadeira fé Católica (1), eles não podem se isolar da maioria não Ortodoxa ao seu redor, mas eles têm a obrigação de contar aos outros o que é a Ortodoxia. Eles devem dar testemunho perante o mundo. A Diáspora tem uma vocação "missionária." Como o Sínodo da Igreja Russa no Exílio disse em sua carta de outubro de 1953, ortodoxos foram espalhados pelo mundo com a permissão de Deus, para que possam "anunciar para todos os povos a verdadeira fé ortodoxa e preparar o mundo para a Segunda vinda de Cristo" (Essa ênfase na Segunda vinda de surpreenderá muitos Cristãos nos dias presentes, mas não era considerada estranha para os Cristãos do primeiro século. Os acontecimentos dos últimos cinqüenta anos, conduziram, a uma forte consciência escatológica, vários círculos Ortodoxos Russos).

 

O que isso significa para os Ortodoxos? Isso não implica em proselitismo no mau sentido. Mas significa que os ortodoxos sem sacrificar nada de bom nas suas tradições nacionais — devem libertar-se de um estreito e exclusivo nacionalismo; eles devem estar prontos a apresentar sua fé para outros, e não se comportarem como se essa fé fosse alguma coisa restrita aos gregos e russos e de nenhuma importância para todos os outros. Eles devem redescobrir a universalidade da Ortodoxia.

 

Se os ortodoxos vão apresentar sua fé, efetivamente para outros povos, duas coisas são necessárias. Primeiro, eles devem entender melhor a sua fé: assim o fato da diáspora forçou os ortodoxos a examinarem a si próprios e a aprofundar sua própria ortodoxia. Segundo, eles devem entender a situação daqueles para quem eles falam. Sem abandonar sua ortodoxia, eles devem entrar na experiência de outros Cristãos, procurando apreciar a visão diferente do cristianismo ocidental, sua história passada e suas dificuldades presentes. Eles devem tomar parte ativa nos movimentos intelectuais e religiosos do ocidente contemporâneo — em pesquisas bíblicas, no reviver Patrístico, no Movimento Litúrgico, no movimento que visa a unidade Cristã, nas muitas formas de ação social Cristã. Eles precisam "estar presentes" nesses movimentos, fazendo sua contribuição ortodoxa especial e, ao mesmo tempo, pela sua participação, aprendendo mais sobre sua própria tradição.

 

É normal falar-se em "Ortodoxia Oriental." Mas muitos ortodoxos na Europa ou América, hoje em dia, olham para si próprios como cidadãos dos países onde eles se estabeleceram.; eles e seus filhos, nascidos e criados no ocidente, consideram-se não "orientais," mas sim "ocidentais." Assim, uma "Ortodoxia Ocidental" veio a existir. Além dos nascidos ortodoxos, essa Ortodoxia Ocidental inclui um número pequeno, mas crescente de convertidos (quase um terço do clero da Arquidiocese Síria na América é de convertidos). A maioria desses Ortodoxos Ocidentais usam a Liturgia Bizantina, de São João Crisóstomo (o ofício Eucarístico normal da Igreja Ortodoxa), em Francês, Inglês, Alemão, Holandês, Espanhol ou Italiano. Existem, por exemplo, paróquias francesas ou alemãs, assim como (sob o Patriarcado de Moscou) uma missão Ortodoxa Holandesa — todas essas paróquias seguindo o rito Bizantino. Mas alguns Ortodoxos acreditam que a Ortodoxia Ocidental, para ser verdadeira em si própria, deveria usar, especificamente, formas ocidentais de oração — não a Liturgia Bizantina, mas as Liturgias Vetero-Romana ou Galicana. As pessoas falam da "Liturgia Ortodoxa," quando, na verdade, estão se referindo à Liturgia Bizantina, como se só esta Liturgia fosse Ortodoxa; mas as pessoas não deveriam esquecer que as antigas Liturgias do ocidente, datando dos primeiros séculos das era Cristã, também tem seu lugar na abrangência total da Ortodoxia.

 

Essa concepção de um rito ocidental Ortodoxo não permaneceu meramente uma teoria. A Igreja Ortodoxa dos dias presentes contém algo equivalente ao Movimento Uniata na Igreja de Roma. Em 1937, quando um grupo de Velhos Católicos na França, sob Monsenhor Louis-Charles Winnaert (1880-1937), foi recebido na Igreja Ortodoxa, eles foram autorizados a manter o uso do rito ocidental. Esse grupo esteve originalmente na jurisdição do Patriarcado de Moscou e esteve por muitos anos sob a chefia do Bispo Jean de S. Dennys (Evgrafh Kovalevsky) (1905-1970). No presente está sob a Igreja da Romênia. Existem vários pequenos grupos de ritos ocidentais ortodoxos nos Estados Unidos. Várias ordens experimentais da missa foram arranjadas para uso dos Ortodoxos de Rito Ocidental, em particular pelo Bispo Aléxis (Vander Mensbrugghe).

 

No passado, as diferentes Igrejas autocéfalas — freqüentemente não por sua responsabilidade — mantiveram-se muito isoladas, umas das outras. Somente a troca regular de cartas entre os chefes de Igreja, era a forma de contato. Hoje em dia, esse isolamento ainda continua, mas tanto na diáspora quanto nas antigas Igrejas Ortodoxas, existe um desejo crescente por cooperação. A participação Ortodoxa no Conselho Mundial de Igrejas (World Concil of Churches) teve seu papel nessa área: nas grandes reuniões do "Movimento Ecumênico," os delegados Ortodoxos de diferentes Igrejas Autocéfalas, constataram que estavam despreparados para falar com uma voz única. Porque, eles perguntavam, foi necessário o World Concil of Chuches, para juntar os Ortodoxos? Porque nós nunca nos reunimos para discutir problemas comuns? A urgente necessidade por cooperação é também sentida por muitos movimentos jovens Ortodoxos, particularmente na diáspora. Um trabalho valioso, nessa área, foi feito pelo Sindesmos, uma organização internacional, fundada em 1953, na qual grupos Ortodoxos jovens de muitos países diferentes colaboram.

 

Nas tentativas de cooperação, um papel de liderança é naturalmente representado pelo Hierarca Sênior de liderança Ortodoxa, o Patriarca de Constantinopla. Depois da primeira guerra mundial, o Patriarca de Constantinopla considerou a hipótese de reunir um "Grande Concílio" de toda a Igreja Ortodoxa e, como primeiro passo para isso, foram feitos planos para um "Pró-Sínodo" que deveria prepara a agenda para o Concílio. Um comitê Inter Ortodoxo preliminar reuniu-se no Monte Athos, em 1930, mas o "Pró-Sínodo," em si, nunca se materializou, em grande parte devido a obstrução pelo governo Turco. Cerca de 1950, o Patriarca Athenágoras reviveu a idéia e, após sucessivos adiamentos, uma "Conferência Pan Ortodoxa," eventualmente, se reuniu, em Rodhes, em setembro de 1961. Outras conferências Pan Ortodoxas reuniram-se em Rhodes (1963-1964) e Genebra (1968, 1976, 1982). Itens principais na agenda do "Grande Concílio," quando e se eventualmente ele se reunir, serão provavelmente um dos problemas recorrentes da desunião da ortodoxia no Ocidente, as relações da Ortodoxia com outras Igrejas Cristãs ("ecumenismo"), e a aplicação do ensinamento moral Ortodoxo no mundo moderno.

 

20. Missões

 

Já falamos do testemunho missionário da diáspora, mas falta dizer algo do trabalho missionário ortodoxo propriamente dito, pregar aos pagãos. Desde os tempos de Joseph De Maistre, no Ocidente, a moda é dizer que a Ortodoxia não é uma Igreja missionária. Certamente, os Ortodoxos deixaram freqüentemente de ver suas responsabilidades missionárias. No entanto, a acusação de De Maistre não é inteiramente correta. Qualquer pessoa que reflita sobre o trabalho missionário de Cirilo e Metódio, de seus discípulos na Bulgária e na Sérvia, e na história da conversão da Rússia, compreenderá que Bizâncio pode reivindicar feitos missionários da mesma dimensão que o cristianismo Celta ou Romano, durante o mesmo período. Sob a dominação Turca, tornou-se impossível conduzir o trabalho missionário abertamente, mas, na Rússia, onde a Igreja permaneceu livre, as missões continuaram — mesmo se, às vezes, houve períodos de atividade reduzida — de Estevão de Perm (e até antes) a Inocêncio do Alaska e o começo do século XX. É fácil, para um ocidental, esquecer da imensidão do campo missionário que o continente Russo constituiu. As missões russas se estendiam além da Rússia, não somente ao Alaska (do qual já falamos), mas à China, Japão e Coréia.

 

E no presente? Sob os Bolcheviques, como sob os Turcos, o trabalho missionário não é possível. Mas as missões estabelecidas pela Bósnia na China, no Japão e na Coréia ainda existem, enquanto que uma nova missão Ortodoxa brotou, de repente e espontaneamente, na África Central. Ao mesmo tempo, tanto na América do Norte, quanto nas Igrejas antigas do mediterrâneo oriental, aonde os Ortodoxos não sofrem dos mesmos males que seus irmãos em países comunistas, começam a mostrar uma nova consciência missionária.

 

A missão chinesa em Pequim foi fundada em 1715 e suas origens datada de mais cedo ainda, de 1686, quando um grupo de cossacos entraram a serviço da guarda imperial chinesa e levaram consigo um capelão. O trabalho missionário em si, entretanto, não começou de fato até o final do século XIX e em 1914 havia somente em torno de 5.000 convertidos, ainda que já houvesse Padres chineses e um seminário de teologia para estudantes chineses. (Tem sido a prática das missões Ortodoxas de formar um clero local mais rápido possível). Após a revolução de 1917, longe de acabar, o trabalho missionário aumentou consideravelmente, já que um número importante de emigrantes Russos, inclusive muitos membros do Clero, fugiu em direção ao oriente a partir da Sibéria. Na China e na Manchúria, em 1939, havia 200.000 Ortodoxos (na maioria Russa, mas incluindo alguns convertidos), com cinco Bispos e uma universidade ortodoxa em Harbin.

 

Desde 1945, a situação mudou drasticamente. O governo comunista na China, quando deu a ordem a todos os missionários estrangeiros de deixar o país, não deu tratamento preferencial aos Russos. O clero Russo, junto com a maioria dos fieis ou foram "repatriados" a URSS, ou escaparam para a América. Nos anos 50 havia, no mínimo, um Bispo Ortodoxo Chinês, com cerca de 20.000 fieis; quanto da ortodoxia chinesa sobrevive até hoje? É difícil de dizer. Desde 1957, a Igreja chinesa, apesar do pequeno tamanho, é autônoma; já que o governo chinês não permite missões estrangeiras. Essa é, provavelmente, a única maneira que essa Igreja tem chances de sobreviver. Isolada na China vermelha, essa minúscula comunidade tem um caminho espinhoso pela frente.

 

A Igreja Ortodoxa japonesa foi fundada pelo Padre, e mais tarde Arcebispo, Nicholas Kassatkin (1836-1912), canonizado em 1970. Enviado em 1861 a serviço do consulado Russo no Japão, ele decidiu desde o início trabalhar não só entre os Russos, mas, também, entre os japoneses. Depois de um tempo, dedicou-se, exclusivamente, ao trabalho missionário. Batizou o primeiro convertido, em 1868 e, quatro anos depois, dois japoneses ortodoxos foram ordenados ao Presbiterado. Curiosamente, o primeiro Bispo Ortodoxo japonês, John Ono, (consagrado em 1941), viúvo, era genro do primeiro convertido japonês. Após um período de desânimo, entre as duas grandes guerras, a Ortodoxia no Japão agora está se restabelecendo. Existem hoje cerca de 40 paróquias, com 25.000 fieis. O seminário de Tóquio, fechado em 1919, foi reaberto em 1954. Praticamente todo clero é de origem japonesa, mas um dos dois Bispos é americano. Há um fluxo pequeno, mas constante, de convertidos — em torno de 200-300, por ano, na maioria, jovens na vintena ou trintena, alguns com educação superior. A Igreja Ortodoxa no Japão é autônoma, no que diz respeito à vida interna, ficando sob os cuidados espirituais de sua Igreja-Mãe, o Patriarcado de Moscou. Apesar do número limitado de fieis, ela pode se chamar uma Igreja local do povo japonês, e não uma missão estrangeira.

 

A missão russa na Coréia, estabelecida em 1918, sempre foi de escala menor. O primeiro Padre Ortodoxo coreano foi ordenado em 1912. Em 1934 havia 820 ortodoxos na Coréia, mas hoje parecem ser menos. A missão sofreu, em 1950, durante a guerra civil coreana, quando a Igreja foi destruída; mas ela foi reconstituída em 1953, e uma Igreja maior foi construída em 1967. Atualmente, a missão está sob os cuidados da Diocese Grega da Nova Zelândia.

 

Fora estas Igrejas Ortodoxas asiáticas, há, agora, uma Igreja ortodoxa africana, extremamente vigorosa, em Uganda e no Quênia. Inteiramente nativa desde o começo, a ortodoxia africana não nasceu da evangelização missionária proveniente de países tradicionalmente ortodoxos, mas foi um movimento espontâneo dentre os africanos mesmo os fundadores do movimento ortodoxo africano foram dois originários de Uganda, Rauben Sebansja Mukasa Spartas (Nascido em 1899, tornou-se Bispo em 1972, morreu em 1982) e seu amigo Obadiah Kabanda Basajjakitalço. Criados na tradição anglicana, foram convertidos à ortodoxia nos anos 20, não como resultado de qualquer contato pessoal com outros ortodoxos, mas através de suas próprias leituras e estudos. Nos últimos 40 anos; pregaram energicamente sua fé recém-descoberta a seus compatriotas africanos, desenvolvendo uma comunidade que, segundo alguns relatos, conta com mais de cem mil pessoas, a maioria do Quênia. Em 1982, após a morte do Bispo Rauben, havia dois bispos africanos.

 

Inicialmente, a posição canônica da ortodoxia Ugandense era duvidosa, pois originalmente Rauben e Obadiah estabeleceram relações com uma organização surgida nos Estados Unidos, a "Igreja Ortodoxa Africana," a qual usava o título de Ortodoxa sem nenhuma conexão com a comunhão ortodoxa verdadeira e histórica. Em 1932 foram ambos ordenados por um certo Arcebispo Alexander da tal Igreja, mas pelo final do mesmo ano, ficaram cientes da situação duvidosa da "Igreja Ortodoxa Africana." A partir desse momento, cortaram todas as relações com ela e contataram o Patriarcado de Alexandria. Somente em 1946, quando Rauben visitou Alexandria, em pessoa o Patriarcado reconheceu oficialmente a comunidade ortodoxa africana em Uganda e recebeu-a sob sua proteção. Mais recentemente, o elo com Alexandria tem se fortalecido e desde 1959, um dos Metropolitas do Patriarcado — um Grego — está encarregado de responsabilidade especial pelo trabalho missionário na África Central. Ortodoxos africanos foram mandados para estudar a teologia na Grécia e desde 1960 mais de oitenta africanos foram ordenados Diáconos e Presbíteros (até esse ano, os únicos Padres haviam sido os dois fundadores). Em 1982, um seminário para tratamento de Padres foi inaugurado em Nairóbi: muitos africanos ortodoxos têm grandes ambições e estão ansiosos para largar ainda mais suas redes. Nas palavras do Padre Spartas: " E, eu acho, que, em pouco tempo, esta Igreja vai incluir todos os africanos e, com isso, tornar-se uma das principais Igrejas da África (citado em F.B. Welbourn, "Rebeldes Africanos Orientais," Londres, 1961, p.83; este livro relata de maneira crítica, mas não insensível, a Ortodoxia em Uganda). A ascensão da Ortodoxia em Uganda deve, com certeza, ser vista na ótica do nacionalismo africano: um dos atrativos evidentes do cristianismo ortodoxo, aos olhos dos Ugandenses, é o fato dele ser completamente desvinculado dos regimes coloniais dos últimos cem anos. Ainda assim, apesar de algumas notas políticas, a ortodoxia na África central constitui um movimento religioso genuíno.

 

O entusiasmo com o qual estes africanos aceitaram a Ortodoxia tem atiçado a imaginação do mundo Ortodoxo e ajudou a despertar o interesse missionário em vários lugares. Paradoxalmente, até agora, na África, foram os africanos mesmo que tomaram a iniciativa e se converteram à Ortodoxia. Talvez os Ortodoxos, encorajados pelo precedente ugandense, irão, agora, fundar missões em outros lugares por sua própria iniciativa, em vez de esperar que os africanos venham a eles. A situação "missionária" da diáspora tornou a Ortodoxia mais consciente do significado de sua tradição: não poderá um envolvimento mais marcado na evangelização ter o mesmo efeito?

 

Todo corpo cristão é confrontado hoje em dia a graves problemas, mas talvez os ortodoxos tenham maiores dificuldades que os outros. Na Ortodoxia contemporânea, não é sempre fácil "reconhecer a vitória sob as aparências externas de um fracasso, de discernir o poder de Deus se realizado na fragilidade, a verdadeira Igreja dentro da realidade histórica" (V.Lossky, Teologia Mística da Igreja Oriental, p.246); mas, se existem fraquezas evidentes, existem, também, vários sinais de vida. Quaisquer que sejam as dúvidas e ambigüidades das relações Igreja-Estado nos países comunistas, a Ortodoxia, no presente como no passado, tem seus mártires e confessores. O declínio do Monasticismo Ortodoxo, óbvio em muitas regiões, não é universal: há centros que podem vir a ser a fonte de uma ressurreição monástica no futuro. Os tesouros espirituais da Ortodoxia — Por exemplo, a Filocalia e a oração de Jesus — longe de haverem sido esquecidos, são usados e apreciados cada vez mais. São poucos os Teólogos Ortodoxos, mas alguns — freqüentemente estimulados por estudos ocidentais — estão redescobrindo elementos vitais de sua herança teológica. Um certo nacionalismo míope está atrapalhando o trabalho da Igreja, mas há tentativas, em número cada vez maior, de cooperação. Missões existem numa escala ainda muito pequena, mas a Ortodoxia está demonstrando maior entendimento de sua importância. Nenhum Ortodoxo realista e honesto consigo próprio pode se sentir confortável sobre o estado atual da Igreja; por outro lado, mesmo com seus muitos problemas e omissões, a Ortodoxia pode, ao mesmo tempo, olhar para o futuro com confiança e esperança.

 

Igreja Ortodoxa da Diáspora e Grécia de G.O.C.'s do Brasil  sob Santo Sínodo Metropolitano do Calendário Patrístico de G.O.C.'s da Igreja de Hellas, * Rua 15, Nº 15 * Conjunto Industrial * Maracanaú - Ceará - Brasil CEP *. 61925-330. SEC. (85) 8656-1178; (85)3014-1911